Estado e Cultura: o necessário conflito

AutorMaria Manuel Rocha Teixeira Baptista
CargoUniversidade de Aveiro - Portugal
Páginas37-43

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1 Introdução

Na tradição da cultura ocidental, e mais especificamente europeia, as relações entre Estado e Cultura apresentam-se como das realidades mais equívocas, contraditórias, tensas e dinâmicas de que há memória. Historicamente dependentes uma da outra, procurando-se e exigindo-se mutuamente, rapidamente a sua relação se torna conflituosa e, quantas vezes, em puro exercício de poder.

A gênese desta dinâmica reside efectivamente na essência e objectivos de cada uma delas: enquanto o Estado encarna o poder económico e o poder político, no sentido estrito (portanto, a esfera material da vida), a Cultura ocupa-se do domínio da criação, que poderíamos designar mais latamente por espiritual (mesmo quando o que está em questão é a criação de objectos artísticos materiais ou a da cultura popular).

Tendo no seu centro o artista/produtor/criador cultural, este sistema é hoje entendido como umjogo, conflito, luta e oposição dialéctica entre outros três tipos de agentes: públicos, mediadores e decisores/produtores. As relações entre o artista e o público são centrais, embora nem sempre fáceis, e podem designar-se como constituindo uma espécie de subsistema artístico. Já o sistema culturalincluihoje os decisores (financiadores, políticos…) e os mediadores (jornalistas, críticos, publicitários…).

Desde 1969/70 que na Europa, e mais particularmente em França (que, do ponto de vista culturalexerce umainfluência muitíssimoimportante para a esmagadora maioria dos países europeus, onde Portugal se inclui), abandonou-se o conceito de ‘secretaria de estado dos assuntos culturais’para se passar a entender o desenvolvimento cultural como uma política global da cultura, integrada no desenvolvimento global do país. As regras do sistema cultural passaram a ser estudadas e compreendidas de forma muito específica, contribuindo para conferir ao sistema uma identidade própria e um comportamento particular (BERTALANFFY, 1999; MOLLARD, 1994). Entre elas, destaca-se a ‘hipérbole cultural’ que se refere aos efeitos de politização, mercantilização e manipulação que a democracia cultural tem, forçosamente, como uma das suas consequências mais perversas, da qual provém o corolário da sanção da oferta pela procura.

Outra característica do sistema remete para o facto de a criação ser cada vez mais social/colectiva, longa no tempo e complexa. Para além disso, a criação cultural passou hoje a relevar de uma luta dialéctica entre os critérios da qualidade e da quantidade. Finalmente, e como última, mas não menos importante regra do sistema cultural, conta-se o seu objectivo final de transformar a criação em memória. Na verdade, é a acumulação de obras de arte e do espírito que constituem propriamente a cultura.

2 Estado versus cultura ou do poder político ao espiritual

A história das relações entre Estado e Cultura é, assim, a história das lutas e mútuas reivindicações e expectativas entre o poder político e poder espiritual: na cultura ocidental, e logo desde os gregos, o primeiro compreende que deve colocar o segundo ao seu serviço, se quiser manter o seu prestígio e perpetuar uma dada imagem de si próprio; o segundo cedo adquiriu a consciência da sua fragilidade intrínseca, sobretudo se não dispuser do apoio do poder político e económico, ou como durante séculos se disse na Europa, do ‘braço secular’.

À medida que o poder espiritual se laiciza (e deixa de se esgotar completamente nas actividades da Igreja Católica Romana), encaminhando-se para aquilo que hoje entendemos genericamente sob o termo ‘cultura’, as relações com o poder político e económico tornam-se ainda mais equívocas. É, de facto, no Renascimento dos séculos XIV, XV e ainda XVI, que a valorização das actividades do espírito humano atingem a sua expressão enquanto realidade emancipatória e mesmo construtora da humanidade. O Humanismo implica precisamente, e pela primeira vez na história do Ocidente, esse impulso de autonomização ideal da cultura.

Na prática, as relações com o poder económico e político mantém-se exactamente as mesmas: os mecenas, os reis e os grandes senhores (dos Medici aos Lorenzo) necessitam de artistas, intelectuais, poetas e cientistas que produzam um discurso legitimador que ultrapasse a voragem do tempo e os faça permanecer na memória histórica da humanidade. Sob a capa de uma aparente laicização, a cultura permanece intimamente dependente do poder político e económico, embora sempre se sinta moral e intelectualmente superior àquele. Na verdade, é na base desta aspiração perene de autonomia e liberdade da Cultura face ao Estado (na prática, muito ilusória) que os discursos e movimentos culturais são ciclicamente produzidos contra os poderes económico e político. Estes, porém, cientes de que os seus meios são indispensáveis à prossecução dos mais altos fins culturais e espirituais da humanidade, foram aplicando, de forma mais ou menos clara ou consciente, os seus métodos de censura e controlo na produção cultural.

Em última análise, aquilo que interessa ao poder político e económico representado pelo Estado é que a Cultura possa produzir um discurso que o legitime, sem o qual o seu poder será vazio e efémero (LOURENÇO, 1974). Todos os outros sectores da cultura, que passam pela crítica, pela criação do inovador ou pela libertação de forças de consciência e acção política, no sentido da autoconstrução do cidadão e da sociedade, são vistos, naturalmente, com desconfiança. Por seu turno, a Cultura (dos criadores aos espectadores,Page 39 passando pelos bens culturais) deve a sua legitimidade à prossecução de fins que lhe são próprios e reputados pelos homens como dos mais nobres da humanidade: a busca e construção poiética da sua humanidade através do acto criativo, da crític a ( aut o e hetero ), do aperfeiçoamento de si mesmo e dos outros. Ora, como se vê, trata-se de fins profundamente divergentes e até incompatíveis entre Estado e Cultura que, ao longo da história europeia e ocidental, têm resultado em conflitos diversos, resolvidos de modos também eles diversos.

Se o Humanismo...

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