Cultura política: convergências e diferenças em Porto Alegre e Curitiba

AutorPaulo J. Krischke
Páginas142-175

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Introdução

A* importância2 dos estudos sobre cultura política está nas evidências que eles proporcionam acerca da disposição das pessoas a apoiar o regime democrático, apesar das eventuais desilusões com esse ou aquele partido ou governante de turno. Infelizmente, muitas vezes, há certo simplismo ou certa linearidade nesses estudos sobre a cultura política, pois muitos pretendem que os processos de democratização sejam inexoráveis ou irreversíveis – como se lhes coubesse seguir a mesma trajetória de modernização (hoje diríamos “globalização”) trilhada pelos países centrais do ocidente. A finalidade do questionamento das abordagens à modernização que faremos aqui é interpretar adequadamente os resultados de uma pesquisa comparativa recente, sobre as mudanças em curso na cultura política, nas cidades de Curitiba e Porto Alegre, e as diferenças e semelhanças que existem no interior dessa cultura. A primeira parte do trabalho apresenta as linhas gerais da interpretação convencional da mudança e modernização cultural, que foi testada na pesquisa.

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A segunda parte apresenta resultados encontrados na pesquisa que, em sua maioria, contradizem essa interpretação, por mostrarem as ambigüidades e as diferenças existentes nos processos de democratização da cultura política em Curitiba e em Porto Alegre, bem como as suas convergências e contribuições ao fortalecimento da democracia. Modernização (e “pós-materialismo”) 3

Sabemos que as teorias da modernização dos anos 1950 e 60 adotaram um determinismo socioeconômico e político-cultural que hoje consideramos datado pelas ilusões do pós-guerra. Pensava-se então que o desenvolvimento socioeconômico exibiria uma capacidade integrativa quase infinita, difundindo o crescimento, a riqueza, a tolerância e a liberdade política – e até a felicidade pessoal entre a população da América Latina 4 . É certo também que esse determinismo não era apenas econômico, pois se baseava na suposição de que o desenvolvimento da economia e da tecnologia viria acompanhado de mudanças sociopolítico-culturais que retirariam a sociedade de seu legado tradicional, para adotar os padrões culturais e institucionais vigentes nos países centrais e democráticos do ocidente 5 .

A seguir, veremos que essa perspectiva é compartilhada explicitamente por Ronald Inglehart (1997), que vincula a emergência de uma nova cultura – denominada “pós-materialista” –, entre a juventude do mundo inteiro, a essa maior afluência e sofisticação socioeconômica, política e cultural, inicialmente, apenas encontrada nos países centrais do ocidente. Desde já devemos reconhecer que, a partir de diversas perspectivas teóricas, e com abundante base empírica, vários estudiosos da democratização na América Latina (por exemplo, Remmer, 1990; Bermeo, 1992; Geddes, 1995; Munck, 1996; Przeworski e Limongi, 1993) têm refutado explicitamente as teses sobre a modernização, propostas por Lipset e outros, acerca dos condicionantes socioeconômicos da democracia.

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A utilização que esses últimos autores fazem dos indicadores socioeconômicos (e outros de caráter político, elaborados pela Freedom House ) padece de um viés etnocêntrico e determinista, que tem merecido a crítica metodológica de vários estudos, como, por exemplo, Escobar (1992, p.433-34), Munck (1996, p.24-5) e Krischke (2000, 2001). Especificamente, essa forma de determinismo considera a modernização como decorrente de forças externas materiais que se impõem à população, em nome de um “progresso” econômico e tecnológico aparentemente inelutável. Isso resultaria em novas formas de socialização (por exemplo, via mídia eletrônica e informatização) – sem a mediação explícita de processos históricos de aprendizado e elaboração cultural intersubjetiva, em que os indivíduos estivessem envolvidos como participantes ativos 6 .

Ronald Inglehart dedicou um de seus livros mais abrangentes, Modernização e pós-modernização. Mudança cultural, econômica e política em 43 Sociedades (1997), a uma retomada da teoria da modernização, em que busca matizar os efeitos do viés determinista dessa teoria. Para isso, lança mão da massa de dados do World values survey (pesquisa mundial sobre valores), a fim de afirmar sua interpretação da mudança cultural nos valores das populações, com base em duas hipóteses: a de incidência da “escassez” e a dos efeitos e períodos de “socialização”, entre diferentes estratos de idade ou gerações. A hipótese de escassez postula que “as prioridades do indivíduo refletem o seu ambiente socioeconômico”. A hipótese de socialização postula que, “em grande medida,Page 145os valores básicos dos indivíduos refletem as condições prevalecentes durante o período anterior à sua vida adulta” (ECHEGARAY, KRISCHKE e TOSO, 1998) 7 .

Essas duas hipóteses orientam o argumento de Inglehart, de que, quando as necessidades físicas e econômicas são, apenas, parcialmente satisfeitas durante a fase pré-adulta, a pessoa colocará maior valor na segurança física e econômica, ao atingir a idade adulta. Por isso, essa pessoa será considerada “materialista”, enquanto “pós-materialistas” seriam aqueles que preferem objetivos e valores menos tangíveis, pois tiveram assegurada sua segurança física e econômica, durante a idade pré-adulta. Esses “pós-materialistas” estariam mais preocupados com a qualidade de vida, a afetividade e a estética do que com considerações de ordem econômica e material.

Inglehart testou inicialmente suas hipóteses na Europa ocidental e demais países centrais do ocidente, onde postulou que as gerações nascidas no pós-guerra gradualmente teriam passado (em parte, mas de modo crescente) a adotar valores “pós-materialistas”. Também postulou ali que essa tendência estava relacionada a atitudes participativas, na esfera pública em âmbito local, e em movimentos sociais dos anos 1970 e 80, movimentos pacifistas, ecológicos, de gênero, minorias raciais, culturais etc. (CLARK e INGLEHART, 1990). A série longitudinal da pesquisa, realizada regularmente desde a metade dos anos 1970, também postulou que a tendência ao pós-materialismo não era apenas um fenômeno juvenil que acaso desaparecesse na fase adulta, pois as gerações que adotaram esses valores tenderiam a persistir no seu apoio.

As alternativas utilizadas como questões de pesquisa são, em geral, as quatro empregadas originalmente por Inglehart. Os entrevistados são convidados a selecionar, entre quatro possibilidades, as que deveriam ser, por ordem de prioridade, os dois principais objetivos no país: 1) manter a ordem; 2) maior participação da população nas decisões importantes do governo; 3) combater a inflação; 4) proteger a liberdade de expressão.

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Os entrevistados que selecionam “manter a ordem” e “combater a inflação” são classificados como materialistas e aqueles que escolhem “maior participação” e “liberdade de expressão” são classificados como pós-materialistas. As quatro combinações restantes são classificadas como “mistas” 8 .

No livro de 1997, Inglehart trata de ampliar seu argumento, com amostras nacionais da população em 43 países, quatro delas da América Latina (Argentina, Brasil, Chile e México). Nos países do chamado terceiro mundo, assim como na Europa oriental, a tendência em apoio aos valores pós-materialistas é incipiente, fato geralmente atribuído pelo autor à incidência de fatores de insegurança econômica, política e material na fase pré-adulta dos entrevistados (a hipótese de socialização). Nesse livro, Inglehart expande o seu argumento, explicitando a teoria em termos de modernização e pós-modernização. Assim fazendo, assume sua vinculação com as teorias anteriores da modernização, que busca adaptar a sua proposta, ao mesmo tempo em que dialoga com as teorias sobre a chamada pós-modernidade, com a mesma finalidade.

A posição formal de Inglehart, logo no início do livro, é aparentemente crítica do viés determinista dos estudos convencionais da modernização, afirmando que “não assumimos o determinismo, econômico ou cultural: nossos resultados sugerem que as relações entre valores, política e economia são recíprocas, e a natureza exata desses vínculos em cada caso é uma questão empírica, antes que algo a ser decidido a priori ”(p.4). O autor encaminha a seguir sua proposta de “análise funcional e síndromes de mudança previsíveis”, pois “todo sistema econômico e político tem um sistema cultural que o legitima [...]. O processo não é teleológico, mas opera como se fosse: as sociedades com sistemas legítimos de autoridade têm mais chances de sobrevivência que aquelas que não os têm”(p.14-15).

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Entretanto, buscando superar o funcionalismo standard das teorias anteriores sobre a modernização, a mudança da cultura atual para o pós-materialismo é vista como “mutações [que] não acontecem para servir a uma função, mas [que] sobrevivem e se difundem porque a servem” (p.16).

Inglehart busca, portanto, escapar do estigma determinista, mediante uma estratégia evasiva, em que tenta abrigar-se na noção de “equilíbrio homeostático” da teoria dos sistemas (JOHNSON, 1966). Desse ponto de vista, ele propõe, inclusive, uma leitura adaptativa da cultura pós-moderna, que os adeptos mais militantes dessa mudança cultural teriam certamente grande dificuldade em aceitar. Sobre isso, recomendamos Gibbins (1992, Introduction ). Interessa salientar que toda essa preocupação multicausal com o equilíbrio funcional não o faz descartar os condicionantes socioeconômicos, estipulados pela teoria da modernização, antes, ao contrário 9 . E grande parte do livro dedica-se a contrastar a busca pela segurança material, típica da modernidade, com a crescente ênfase cultural na qualidade de vida, típica da pós-modernidade.

Inglehart enfatiza assim a existência de duas formas ou dois modelos contrastantes de sociedade, cada uma com suas próprias condições de...

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