Da exclusão à inclusão consentida: negros e mulheres na diplomacia brasileira

AutorKarla Gobo
Páginas440-464
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2018v17n38p440/
440 440 – 464
Da Exclusão à Inclusão
Consentida: negros e mulheres
na diplomacia brasileira1
Karla Gobo2
Resumo
Inteligência, sof‌isticação, gosto apurado, domínio de várias línguas, conhecimentos estabele-
cidos de arte, cultura e o uso das regras de etiquetas. Esses aspectos, de forma naturalizada,
compõem o habitus diplomático. A diplomacia brasileira por muito tempo se manteve f‌iel às
normas e ao espaço que a consagravam e distinguiam do restante da sociedade brasileira, por isso
até à redemocratização o Itamaraty era o espelho de sua elite, isso inclui a maioria expressiva de
homens brancos. Somente a partir da segunda metade dos anos 1990 se adotam medidas mais
efetivas com a preocupação de diversif‌icar os quadros da carreira. Considerando a construção his-
tórica do campo, do habitus diplomático e as medidas adotadas nas últimas décadas, pretende-se
investigar as formas de exclusão e inclusão das minorias, sobretudo mulheres e negros. A investi-
gação sobre esse espaço social é fundamental na medida em que a produção acerca desse campo
e de seus agentes é bastante escassa. Para a análise foram empregados métodos quantitativos e
qualitativos: survey, entrevistas, livros de memórias, biograf‌ias, consulta a banco de dados com
a origem geográf‌ica e formação escolar, anuários e editais de concurso.
Palavras-chave: Itamaraty. Diplomatas. Burocracia.
Introdução
Ao longo da história o corpo diplomático brasileiro se constituiu
como um campo3 distinto do restante da burocracia de Estado. Desde seus
primórdios, tratou-se de um campo em que critérios de distinção4 – que
1 A primeira versão deste texto foi apresentada no IX Congresso da Associação Latino-americana de Ciência
Política.
2 Doutora em Sociologia pela Unicamp. Professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing e da
Universidade Veiga de Almeida. Pesquisadora do Laboratório Cidades Criativas.
3 O conceito de campo utilizado aqui é aquele frequente na literatura bourdiesiana, que o trata como uma
estrutura de relações objetivas, relativamente autônoma dos demais
4 A distinção no mundo social unif‌ica e distancia. Ao passo que a diplomacia brasileira era muito diferente
dos seus representados, era também muito semelhante às demais existentes pelo mundo, constituindo uma
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 38 - Jan./Abr. de 2018
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consideravam uência em línguas estrangeiras, conhecimentos estabele-
cidos de arte e cultura, naturalidade no uso das etiquetas e nas formas de
se vestir – como elementos fundamentais para o exercício da prossão.
O trecho a seguir expressa muito bem o habitus corrente na prossão:
Não eram os diplomatas brasileiros parecidos entre si, como éramos também parecidos com
todos os diplomatas do mundo – mas um mundo que consistia em uns quarenta países,
dentre os quais talvez uma dúzia ou pouco mais que de fato contassem. Integrávamos uma
elite, uma comunidade global que compartilhava estilos e práticas. Essa crème de la crème
internacional se entendia em francês, a língua diplomática par excellence. Compreende-se
esse tribalismo elitista. Era prático que agissem todos sob um mesmo código e que, literal
e metaforicamente, falassem a mesma língua [...] O Itamaraty era então – e sobretudo – a
Casa da elite. Diria mais: era o lugar que reunia a elite da elite, e sua legitimação derivava
de se perceber e de ser percebida como núcleo de qualidade e excelência. Com a criação
do Instituto Rio Branco, deixou de ser uma Casa de elite por seleção aristocrática para ser
também uma Casa de elite por seleção intelectual. O conceito de elite não só per-
maneceu como robusteceu [...] (AZAMBUJA, 2011).
Seja por meio do recrutamento personalista, que vigorou basicamen-
te até a década de 1930, cujos atributos eram o capital cultural e social5
dos interessados na carreira. Ou por intermédio do recrutamento racional,
depois da adoção do concurso público, em que eliminou ou limitou a im-
portância do capital social, a diplomacia brasileira esperava ser o espelho de
sua elite: homens brancos, da zona sul do Rio de Janeiro, cuja sociabilidade
se iniciava nos colégios da antiga capital, com vivências em outros países6.
“unidade global que compartilhava estilos e práticas”. Em outras palavras, independente das diferenças
culturais ou de nacionalidade, cultivam-se traços distintivos capazes de unir os “diplomatas do mundo”, ou do
mundo que importa: aqueles que dentre outras coisas, têm em comum o culto e a valorização dos signos mais
consagrados nas sociedades ocidentais, sobretudo de origem europeia com acento francês. A cumplicidade e
familiaridade entre eles está fundada numa comunidade que lhes confere coesão e que vai além dos interesses
prof‌issionais, compartilhando-se valores, uma forma de ser e de apreciar, inclusive em nível inconsciente.
5 Esses dois tipos de capital constituem aquilo que Bourdieu chamou de capital simbólico que é [...] uma
propriedade qualquer (de qualquer tipo de capital; físico, econômico, cultural, social), percebida pelos agentes
sociais cujas categorias de percepção são tais que eles podem entende-las (percebê-las) e reconhecê-las,
atribuindo-lhes valor).” (BOURDIEU, 2005, p. 107).
6 É exemplif‌icativa a matéria sobre a morte de Manoel Pio Côrrea, no jornal Folha de São Paulo: “Ao lado da
família, o carioca Manoel Pio Corrêa conheceu os cinco continentes ainda criança. Seu pai, um famoso botânico
de mesmo nome, viajava o mundo como pesquisador do museu de história natural de Paris à procura de plantas
desconhecidas. Grande conhecedor da Revolução Francesa, era dono de cerca de 1.000 publicações só sobre o
tema, em diferentes línguas – falava pelo menos seis, além do português”. Disponível em: http://www1.folha.uol.
com.br/cotidiano/2013/12/1385611-manoel-pio-correa-jr-1918-2013---o-diplomata-as-viagens-e-os-livros.shtml

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