Da inconstitucionalidade do parcelamento fiscal instituído pela Lei 12.688, de 18.7.2012

AutorAlex Pereira de Almeida
CargoGraduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e especialista em Direito Tributário pelo IBET-Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Advogado
Páginas105-114

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Ver nota 1

I - Introdução

O presente ensaio tem o objetivo de analisar a constitucionalidade do parcelamento fiscal instituído pela Lei federal n. 12.688, de 18 de julho de 2012, o denominado Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (PROIES).

O escopo do trabalho será o de analisar as colisões e antinomias existentes entre o aludido programa de parcelamento fiscal, que permite que parte do pagamento dos créditos devidos seja realizado por meio de bolsas de estudo concedidas pelas mantene-

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doras das Instituições de Ensino Superior para estudantes de cursos superiores não gratuitos, e o parcelamento na forma permitida pelo Código Tributário Nacional-CTN, que somente permite o parcelamento com pagamento em dinheiro.

II - Ave palavra: da importância da linguagem na construção dos institutos jurídicos

O legislador atua, ainda que indiretamente, sobre a realidade posta ao selecionar condutas que deseja disciplinar. Nos dizeres de Paulo de Barros Carvalho, legislar é uma arte, pois no processo de enunciação das leis, o legislador deve "mobilizar ao máximo as estimativas, crenças e sentimentos do destinatário".2Trata-se, deveras, de um laboroso trabalho de redução de variedade de comportamentos possíveis em substrato linguístico. Neste mister, ora estimula as condutas que entende benquistas para a comunidade destinatária das leis, ora delimita ou proíbe condutas reprováveis, sempre mirando-se com premissas axiológicas extraídas do anseio social, processo em que constantemente esforça-se a regular por meio de uma lingua-gem adequada as condutas intersubjetivas da comunidade destinatária.

O insigne jusfilósofo Lourival Vilanova já advertira que a relevância jurídica é qualificação genérica que ocorrendo no mundo, por sua validade ou desvaliosidade, tem relação com sujeito de direito.3Há que se constar, ademais, que a própria formação pessoal do intérprete pode influenciar na interpretação, o que justifica a assertiva de que um único enunciado pode despertar diferentes proposições, ao passo que uma proposição pode ser expressa por diferentes formas.

É um erro do intérprete cogitar que a lei retrata a realidade, ou mesmo inferir que seja possível a automática e total subsunção da norma ao fato, ou do fato à norma. A norma reside em outro plano equidistante do plano fático, é o ser cognoscente que faz a ponte interpretativa entre estes campos.

Para o mestre Lourival Vilanova, a lei jamais coincidirá com o fato jurídico, dado o simples fato que habitam esferas diferentes, aquela reside no universo da abstração e generalidade, este reside no âmbito da concreteza. Sobre esta discrepância, pondera o insigne jurisfilósofo pernambucano: "A lei é o conteúdo objetivado do fato jurídico, do fato jurígeno, cuja generalidade e abstrateza contrastam com a individuação e a concreteza da relação jurídica. A lei (geral) é um esquema e, como esquema, sem individualização. Contém variáveis, variáveis (indeterminadas) de fatos, vários indivíduos (os sujeitos-de-direito) e variáveis de conduta (pretensões e prestações, em sentido amplo)".4Para o ilustre pensador pernambucano o direito não sofre transmutação para os eventos, pois se trata, ele o direito, de fenômeno estático. Neste sentido, pondera o jusfilósofo: "Se o fato não ocorreu a norma geral (ou individual) permanece em seu status proposicional, lógico, sintático, sem os correspondentes semânticos ou fáticos: o direito norma não se realiza, não é realidade sociocultural".5Destarte, para o jusfilósofo pernambucano "a realidade social é, constitutivamente, realidade normada. É social porque implanta valores através de formas normativas dos usos e costumes, da moral, de direito".6

Assim, a realidade normada conjeturada por Lourival Vilanova é basicamente um fenômeno linguístico, concentrado na estrutura da hipótese normativa: "Nem tudo do real tem acolhida no universo das proposições. No

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campo do direito, especialmente, a hipótese apesar da sua descritividade, é qualificadora normativa do fáctico. O fato se torna fato jurídico porque ingressa no universo do direito através da porta aberta que é a hipótese".7Na mesma direção, no entendimento de Vilém Flusser não há, em absoluto, correspondência entre realidade posta e o fenômeno linguístico, mas sim a linguagem trata-se ela mesmo de elemento estruturante da realidade. Neste sentido, pondera o ilustre filósofo tcheco: "A língua deve ser aceita como o dado bruto por excelência, e suas regras devem ser aceitas como estrutura da realidade. O conhecimento é como observação dessas regras. A verdade absoluta, isto é, a correspondência entre língua e realidade em si, é tão inarticulável quanto essa realidade em si".8Já para Lourival Vilanova, ao debruçar-se sobre a estrutura das normas jurídicas, constata que a hipótese normativa, não obstante identifique-se com a descrição hipotética de um fato extraído (percebido) do seio social, não mantém com os fatos uma perfeita identificação com o dado empírico: "A hipótese, que é proposição descritiva de situação objetiva possível, é construção valorativamente tecida, com dados-de-fato, incidente na realidade e não coincidente com a realidade. Falta-lhes, pois status semântico de enunciado veritativo".9Noutro trecho arremata o jusfilósofo pernambucano: "As normas não são postas para permanecer como estruturas de lingua-gem, ou estruturas de enunciados, bastantes em si mesma, mas reingressam nos fatos, de onde provieram, passando do nível conceitual e abstrato para a concrescência das relações sociais, onde as condutas são como pontos e pespontos do tecido social".10Com efeito, a linguagem é imprescindível ao operador do direito. Para dimensionarmos a importância do estudo da teoria hermenêutica, e principalmente do estudo da linguagem como matéria-prima da "realidade criada", basta apenas relembrarmos que, no âmbito das discussões processuais, vigora o brocardo latino que reza que "o que não está nos autos não está no mundo" (quod non est in actis non est in mundo).

Trata-se, obviamente de um mero aforismo, dado que existem inúmeros objetos do mundo circundante que são impossíveis de serem reduzidos a instrumento de prova, contudo expressa a ideia, já convencionada, de que somente aquilo que é exteriorizável em linguagem processual tem relevância para o julgamento de um dado processo. Tal premissa, aliás, desafiam os operadores do direito, diuturnamente, reduzirem percepções obtidas do mundo fático ao fascinante universo da linguagem, por meio do qual o direito se manifesta.11A linguagem é um componente determinante na criação, interpretação e alteração de institutos jurídicos, desde o processo de enunciação das leis até a subsunção dos fatos regulamentados pela norma geral e abstrata.

Esta natureza constitutiva da linguagem não passou despercebida por Martin Heidegger, filósofo alemão que afirmara categoricamente que onde falta palavra, nenhuma coisa remanesce,12coadunando-se com o

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que a teoria comunicacional denominou de autorreferência da linguagem.13Verifica-se, contudo, que este esforço de previsão de condutas não coincide, nem deveria, com a realidade posta, vez que a realidade é inatingível. Tal como os nossos ouvidos não conseguem captar os milhares de ruídos que estão dispersos no ambiente, não possuímos a capacidade de descrever a realidade fática posta em sua total concretude. Nossa capacidade descritiva do mundo está, por bem, delimitada pelo alcance da linguagem.

Esta delimitação alcança, inclusive, o processo de enunciação das leis, tal como acontece em qualquer atividade de elaboração de textos, principalmente pelo fato de o Poder Legislativo também sujeitar-se às imprecisões, ambiguidade e vaguidade, vícios estes que muitas vezes afastam o exegeta da vontade autêntica do enunciador.

Há outras vezes, ademais, que o próprio legislador se afasta da nor ma de estrutura que deveria servir de fundamento de validade para a instituição de novos institutos jurídicos, incorrendo em erros de uso de outros institutos previstos em normas de hierarquia superior.

Como verificar-se-á adiante, foi o que ocorreu no processo de enunciação da Lei federal n. 12.688, de 18 de julho de 2012, que criou o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (PROIES), objeto sobre o qual concentraremos as principais atenções no presente trabalho, em que o legislador com o propósito de criar um novo parcelamento de débitos fiscais, criou uma nova modalidade de extinção do crédito tributário que em nada se coaduna com o parcelamento permitido pelo Código Tributário Nacional.

III - Moratória e parcelamento fiscal

O Código Tributário Nacional-CTN prevê entre as hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário a moratória (art. 151, inc. I) e o parcelamento fiscal (art. 151, inc. VI), in verbis:

Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:

I - moratória;

II - o depósito do seu montante integral;

III - as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo...

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