Decisão Monocrática nº 50003852820228210066 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Primeira Câmara Cível, 10-08-2022

Data de Julgamento10 Agosto 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualApelação
Número do processo50003852820228210066
Tipo de documentoDecisão monocrática
ÓrgãoPrimeira Câmara Cível

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20002560589
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

1ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Apelação Cível Nº 5000385-28.2022.8.21.0066/RS

TIPO DE AÇÃO: Padronizado

RELATOR(A): Des. CARLOS ROBERTO LOFEGO CANIBAL

APELANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA

APELADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

APELADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

EMENTA

apelação cível. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. TRATAMENTO DE SAÚDE. CONSIDERAÇÕES.

1. Do direito ao tratamento.

Sendo dever do ente público a garantia da saúde física e mental dos indivíduos, e restando comprovada nos autos a necessidade da parte requerente de submeter-se ao tratamento descrito na inicial, imperiosa a procedência do pedido para que o ente público o custeie. Exegese que se faz do disposto nos artigos 5º, caput, 6º, caput, art. 23, inciso II, e 196, todos da Constituição Federal de 1988.

Impossibilidade de entrega pela Denominação Comum Brasileira do insumo postulado nos autos diante da vedação expressa do médico que cuida do caso clínico da paciente,

2. Autoaplicabilidade do art. 196 da Constituição Federal de 1988. Postulado constitucional da dignidade da pessoa humana.

O direito à saúde é garantia fundamental, prevista no art. 6º, caput, da carta, com aplicação imediata – leia-se § 1º do art. 5º da mesma Constituição –, e não um direito meramente programático.

3. Princípio da tripartição dos poderes. Dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

A violação de direitos fundamentais, sobretudo a uma existência digna, legitima o controle judicial, haja vista a inércia do poder executivo.

4. Princípio da reserva do possível.

Não se aplica quando se está diante de direitos fundamentais, em que se busca preservar a dignidade da vida humana, consagrado na CF/88 como um dos fundamentos do nosso estado democrático e social de direito (art. 1º, inc. III, da Carta Magna).

5. Princípio da proteção do núcleo essencial. Princípio da vinculação. Da proibição de retrocesso.

É de preservação dos direitos fundamentais que se trata, evitando-se o seu esvaziamento em decorrência de restrições descabidas, desnecessárias ou desproporcionais.

6. Bloqueio de valores.

O descumprimento com a obrigação judicial imposta autoriza o bloqueio de valores no erário dos réus para que a parte autora adquira o tratamento na esfera particular. Para tanto é necessário apresentar três orçamentos nos autos, devidamente atualizados. O de menor valor deverá prevalecer para tal finalidade.

APELO DESPROVIDO.

DECISÃO MONOCRÁTICA

1. Do relatório.

Trata-se de apelação cível interposta pelo ESTADO/RS, figurando na condição de apelada I.A.M.D.

O Estado alega, em síntese, que o suplemento especial (fórmula infantil NAN CONFORT 1 COM PREBIÓTICOS) postulado pela apelada deve ser fornecido pela sua Denominação Comum Brasileira, e não pelo nome comercial. Diz que não pode ser compelido ao pagamento de produto com marca específica. Pede provimento.

Houve resposta.

O órgão do Ministério Público opina pelo desprovimento do apelo.

É o relatório.

2. Do julgamento monocrático.

O feito comporta julgamento monocrático, consoante o disposto no art. 932, inciso VIII, do CPC/2015, bem como no art. 206, inciso XXXVI, do RITJRS.

3. Do direito à saúde.

Conheço do recurso, pois preenchidos os pressupostos legais de admissibilidade.

3.1 Da responsabilidade pela concessão do tratamento postulado nos autos.

O legislador constituinte de 1988 estabeleceu obrigações aos entes federados para com o desenvolvimento de políticas públicas destinadas à consecução dos serviços de saúde à população, conforme dispositivos que seguem:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

(...)

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

(...)

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (Vide ADPF 672)

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.

(...).

Importa destacar que o SUS engloba a União, o Estado e os Municípios de forma sistematizada e descentralizada, logo não há pretender os entes federativos eximirem-se de suas obrigações.

Indo ao mérito do apelo, a regra é que os fármacos e os insumos a serem disponibilizados pelos entes federados observe a Denominação Comum Brasileira, como postulado. No entanto, o médico que assiste ao paciente deve autorizar que isso ocorra ou devem existir provas concretas de que isso é possível tal intento sem causar danos à saúde do requerente.

O laudo médico acostado nos autos veda a substituição ou o fornecimento de outro produto que não o "leite nan confort 1", não competindo ao Poder Judiciário adentrar em matéria de ordem estritamente técnica.

3.2 Da autoaplicabilidade do art. 196 da Constituição Federal de 1988. Postulado da dignidade da pessoa humana.

O direito à saúde é garantia fundamental, prevista no art. 6º, caput, da Carta Política de 1988, com aplicação imediata – leia-se § 1º do art. 5º da mesma Constituição –, e não um direito meramente programático. Além disso, encontra-se inserido no direito à vida, constante do art. 5º da Carta e, mais ainda, ao princípio da dignidade da pessoa humana, que é fundamento de um Estado que se diz Democrático e Social de Direito.

Não há como afastar o direito à saúde dos direitos fundamentais, sob pena de negarmos ao cidadão o direito à vida.

Muitas vezes, para não dizer na maioria, o fundamento da República – dignidade da pessoa humana – insculpido no art. 1º, inc. III, da Constituição Federal, é simplesmente excluído das “cartilhas” dos entes federados, que desconsideram os seres humanos que os compõem como elemento integrante.

Nesse sentido, é mister colacionar as lições de José Afonso da Silva1:

Proteção constitucional da dignidade humana – Portanto, a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana. A Constituição, reconhecendo sua existência e sua eminência, transformou-a num valor supremo da ordem jurídica, quando a declara como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito.

Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito. Portanto, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional.

Repetiremos aqui o que já escrevemos de outra feita, ou seja, que a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. “Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira] o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer ideia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir a ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trata de direitos econômicos, sociais e culturais”. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará à realização da justiça social (art. 193), à educação, ao desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205), etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.

Assim, conforme previsto no § 1º, do art. 5º, da CF/1988, os direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, restando a alegação do ente público vazia de argumentos jurídicos e humanos, impondo-se, portanto, seja desconsiderada.

3.3 Da tripartição dos poderes. Dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

A despeito da alegação de que há violação ao poder discricionário da Administração Pública, em que pese não se possa desconsiderar a conveniência e oportunidade, de forma a relegar qualquer interferência judicial, pena de afronta ao princípio da separação dos poderes, a violação de direitos fundamentais, sobretudo a uma existência digna, haja vista a inércia do Poder Executivo, legitima o controle judicial.

Quanto a esses princípios, a renomada administrativista Maria Sylvia Zanella Di Pietro2 leciona que eles têm como escopo impor limitações à discricionariedade da Administração, a fim de evitar abuso na prática do ato administrativo. Reportando-se ao mestre publicista Gordillo, afirma:

Segundo Gordillho, “a decisão discricionária do funcionário será ilegítima, apesar de não transgredir nenhuma norma concreta e expressa, se é ´irrazoável`, o que pode ocorrer, principalmente, quando:

a) não dê os fundamentos de fato ou de direito que a sustentam ou;

b) não leve em conta os fatos constantes do expediente ou públicos e...

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