Decisão Monocrática nº 52428964720218217000 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Primeira Câmara Cível, 21-03-2022

Data de Julgamento21 Março 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça do RS
Classe processualAgravo de Instrumento
Número do processo52428964720218217000
Tipo de documentoDecisão monocrática
ÓrgãoPrimeira Câmara Cível

PODER JUDICIÁRIO

Documento:20001914332
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

1ª Câmara Cível

Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

Agravo de Instrumento Nº 5242896-47.2021.8.21.7000/RS

TIPO DE AÇÃO: Consulta

RELATOR(A): Des. CARLOS ROBERTO LOFEGO CANIBAL

AGRAVANTE: ENZO CRUZ SILVEIRA (Absolutamente Incapaz (Art. 3º CC)) (REQUERENTE)

AGRAVADO: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (REQUERIDO)

AGRAVADO: MUNICÍPIO DE DOM PEDRITO (REQUERIDO)

EMENTA

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. TRATAMENTO DE SAÚDE. CONSIDERAÇÕES.

1. Do direito ao tratamento.

Sendo dever do ente público a garantia da saúde física e mental dos indivíduos, e restando comprovada nos autos a necessidade da parte requerente de submeter-se ao tratamento descrito na inicial, imperiosa a procedência do pedido para que o ente público o custeie. Exegese que se faz do disposto nos artigos 5º, caput, 6º, caput, art. 23, inciso II, e 196, todos da Constituição Federal de 1988.

2. Autoaplicabilidade do art. 196 da Constituição Federal de 1988. Postulado constitucional da dignidade da pessoa humana.

O direito à saúde é garantia fundamental, prevista no art. 6º, caput, da carta, com aplicação imediata – leia-se § 1º do art. 5º da mesma Constituição –, e não um direito meramente programático.

3. Princípio da tripartição dos poderes. Dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

A violação de direitos fundamentais, sobretudo a uma existência digna, legitima o controle judicial, haja vista a inércia do poder executivo.

4. Princípio da reserva do possível.

Não se aplica quando se está diante de direitos fundamentais, em que se busca preservar a dignidade da vida humana, consagrado na CF/88 como um dos fundamentos do nosso estado democrático e social de direito (art. 1º, inc. III, da Carta Magna).

5. Princípio da proteção do núcleo essencial. Princípio da vinculação. Da proibição de retrocesso.

É de preservação dos direitos fundamentais que se trata, evitando-se o seu esvaziamento em decorrência de restrições descabidas, desnecessárias ou desproporcionais.

6. Bloqueio de valores.

O descumprimento com a obrigação judicial imposta autoriza o bloqueio de valores no erário dos réus para que a parte autora adquira o tratamento na esfera particular. Para tanto é necessário apresentar três orçamentos nos autos, devidamente atualizados. O de menor valor deverá prevalecer para tal finalidade.

RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

DECISÃO MONOCRÁTICA

1. Do relatório.

Trata-se de agravo de instrumento interposto por E.C.S., em que são agravados o ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL e o MUNICÍPIO DE DOM PEDRITO, em face de decisão que indeferiu "o pedido de tutela antecipada para consulta com médico com especialidade em Ortopedia e a realização de Cirurgia de correção de ambos os pés" (evento 7, DESPADEC1).

Inconformada, assevera a parte recorrente a necessidade de realizar a consulta com médico especialista e o procedimento cirúrgico de correção de ambos os pés, tendo em vista que a parte autora é portadora de Deformidade congênita dos pés valgos (CID Q66.6). Arrazoa que a consulta postulada foi solicitada pela médica pediatra "que acompanha a criança desde o seu nascimento" (sic. fl. 4), afastando a alegação do juízo a quo acerca da inexistência de elementos técnicos que justifiquem o pedido. Destaca que está há mais de 1 (um) ano na fila de espera do SUS, sendo que sua doença agrava cada vez mais e dificulta sua locomoção. Aponta a pretensão da tutela de urgência, considerando a probabilidade do direito apresentado e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, sob pena "de bloqueio de valores para aquisição particular" (sic. fl. 6). Pede o provimento (evento 1, INIC1).

Os efeitos da tutela recursal foram parcialmente antecipados (evento 5, DESPADEC1).

Há resposta (evento 12, CONTRAZ1).

O Ministério Público opina pelo parcial provimento do agravo (evento 16, PARECER1).

É o relatório.

2. Do julgamento monocrático.

O feito comporta julgamento monocrático, consoante o disposto no art. 932, inciso VIII, do CPC/2015, bem como no art. 206, inciso XXXVI, do RITJRS.

3. Do mérito.

O agravante recorre da decisão que indeferiu a antecipação dos efeitos da tutela de urgência formulado no bojo da ação de obrigação de fazer ajuizada em face do Estado/RS e do Município de Dom Pedrito, por meio da qual comprova que foi diagnosticado com "deformidade congênita dos pés valgos (CID 10 Q 66.6)", necessitando de consulta com médico especialista e posterior procedimento cirúrgico para correção de ambos os pés.

A julgadora de origem entendeu (evento 14), com fundamento em parecer emitido pelo Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus), que não estão presentes os pressupostos legais para a concessão da tutela antecipada de urgência.

3.1 Do direito invocado pelo agravante.

A evidência quanto à probabilidade do direito invocado pelo agravante se faz presente nos autos. O risco de dano grave, de difícil ou de impossível reparação milita em seu favor, já que na condição de criança, ou seja, ainda em fase de desenvolvimento, necessita da realização de consulta com médico especialista para avaliação do seu caso clínico, o quanto antes, sob pena de agravamento das deformidades que apresenta.

Constata-se que o autor aguarda consulta no SUS há mais de ano, não obtendo resposta até o momento (evento 1 - documentos 20).

Quanto ao aspecto jurídico, o legislador constituinte de 1988 estabeleceu obrigações aos entes federados para com o desenvolvimento de políticas públicas destinadas à consecução dos serviços de saúde à população, conforme dispositivos que seguem:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

(...)

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

(...)

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.

(...).

Os serviços e os atendimentos na área da saúde, bem como a política farmacológica, devem ser financiados e disponibilizados pela União, pelos Estado e pelos Municípios de forma sistematizada e descentralizada, atendendo aos princípios da igualdade e da universalidade.

No que tange à proteção das crianças e dos adolescentes, a Carta Política de 1988 prevê responsabilidade solidária do Estado, da família e da sociedade como um todo, na adoção de políticas públicas que supram as necessidades que eles apresentam como pessoa humana em formação e desenvolvimento. A saber:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos:

(...).

Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Nacional n. 8069/1990) estabelece que:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

(...).

A responsabilidade dos entes federados na adoção de políticas públicas destinadas a promover a saúde das crianças e dos adolescentes se torna plena na hipótese os seus genitores ou responsáveis pela guarda/tutela não possuírem condições de arcar com as despesas do tratamento, como se enquadra a situação dos autos.

Na situação em análise, os documentos demonstram a espera infindável do agravante para receber o atendimento no SUS, bem como a sua hipossuficiência financeira para custear uma consulta particular.

Indeferir a antecipação dos efeitos da tutela com fundamento em Nota Técnica emitida pelo e-NatJus, na qual consta "CONSIDERANDO a ausência de exames radiológicos com as imagens na documentação enviada para análise contendo dados clínicos relevantes que permitam avaliar a demanda pleiteada." sem proceder o exame do paciente, é desvalorizar todo o restante de provas até que produzidas, provas essas que se baseam na realidade dos fatos.

É certo que não se pode deferir o custeio de cirurgia não especificada, mas a consulta com o especialista busca dirimir as dúvidas...

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