O Estado Democrático-Participativo na Constituição de 1988

AutorÁlvaro Luiz Valery Mirra
Páginas78-100
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1. A evolução do Estado constitucional contemporâneo
O Estado constitucional contemporâneo, entendido, segundo a doutrina
de Jorge Miranda, como “Estado assente numa Constituição reguladora tanto
de toda a sua organização como da relação com os cidadãos e tendente à limi-
tação do poder”166, tem passado, ao longo da história, por importante evolução,
desde o nal do século XVIII até os dias atuais.
Inicialmente, o Estado constitucional surgiu, em ns do século XVIII, como
Estado Liberal, tendo sob essa forma se fortalecido no desenrolar do século XIX.
Tratou-se de um tipo de Estado fundado no valor da liberdade individual e em-
penhado em limitar o poder político, em vista do favorecimento dos interesses da
burguesia detentora do poder econômico.167 A ideia subjacente, conforme escla-
rece Dalmo de Abreu Dallari, era a de que cada homem é o melhor juiz dos seus
interesses e deve ter a liberdade de promovê-los segundo a sua livre vontade, não
166. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, cit., p. 46. O Estado constitucional a que aqui
se alude é, por evidente, um Estado de Direito, ou seja, um “Estado em que, para garantia dos direi-
tos do cidadão, se estabelece juridicamente a divisão do poder e em que o respeito pela legalidade
(seja a mera legalidade formal, seja – mais tarde – a conformidade com valores materiais) se eleva
a critério de acção dos governantes” (cf. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, cit.,
p. 46). Nessa ordem de ideias, o Estado constitucional congura um Estado de Direito enquadrado
num sistema normativo fundamental, expresso em um documento legislativo a que se dá o nome
de Constituição (cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, cit., p. 198).
Nele a supremacia do Direito espelha-se no primado da Constituição, como lei das leis, documento
escrito de organização e limitação do poder (cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos
humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 3). Como diz, ainda, Norberto Bobbio, “Hoje,
quando falamos em governo das leis pensamos em primeiro lugar nas leis fundamentais, capazes
de estabelecer não tanto aquilo que os governados devem fazer quanto como as leis devem ser
elaboradas, sendo normas que vinculam, antes ainda que os cidadãos, os próprios governantes (...)”
(O futuro da democracia, cit., p. 23).
167. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, cit., p. 47.
CAPÍTULO 1
O ESTADO DEMOCRÁTICOPARTICIPATIVO
NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
A Participação Popular na Defesa do Meio Ambiente
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se podendo, por isso, admitir qualquer interferência do Estado nos assuntos priva-
dos.168 Daí a sua caracterização, ainda na lição do jurista, como Estado mínimo ou
Estado-polícia, vale dizer, Estado destinado a exercer um mínimo de interferência
na vida social, “com funções restritas quase que à mera vigilância da ordem social
e à proteção contra ameaças externas.169
De acordo com Paulo Bonavides, essa modalidade de Estado constitu-
cional tinha como centro de gravidade a lei, o código, a segurança jurídica, a
autonomia da vontade, a organização jurídica dos ramos da soberania, a se-
paração de Poderes, a harmonia e o equilíbrio funcional entre o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário, a distribuição de competências e a xação de limites
à autoridade do governante.170 Além disso, devido ao seu “compromisso inque-
brantável com a liberdade171, o Estado Liberal foi o modelo que favoreceu a
emergência e o fortalecimento dos direitos políticos e civis, os quais formam a
grande camada dos direitos fundamentais de primeira geração ou de primeira
dimensão172, não por acaso designados, tradicionalmente, como direitos de re-
sistência ou de oposição perante o Estado.173
O século XX, diversamente, marcado por duas guerras mundiais, por
crises econômicas, por mudanças sociais e culturais e pelo progresso técnico
nem sempre destituído de contradições174, viu o aparecimento do Estado Social.
Vericaram-se, com isso, conforme assinala Jorge Miranda, “transformações
do Estado num sentido democrático, intervencionista, social, bem contraposto
168. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, cit., p. 278-279.
169. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, cit., p. 280.
170. BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 5. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2004. p. 40.
171. A expressão é de Paulo Bonavides, Teoria do Estado, cit., p. 39.
172. BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado, cit., p. 39. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos huma-
nos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.
126; COMPARATO, Fábio Konder. A armação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva,
1999. p. 46-47.
173. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2002. p. 517.
No mesmo sentido, LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pen-
samento de Hannah Arendt, cit., p. 126; COMPARATO, Fábio Konder. A armação histórica dos
direitos humanos, cit., p. 46-47. São direitos que, no dizer de Enrique Ricardo Lewandowski, corres-
pondem às liberdades públicas negativas ou liberdades stricto sensu (Proteção dos direitos humanos
na ordem interna e internacional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 65). De igual modo, FERREIRA
FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, cit., p. 6.
174. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, cit., p. 49.

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