Descolonialidade e interculturalidade epistemológica dos saberes político-jurídicos: uma análise a partir do pensamento descolonial

AutorEloise da Silveira Petter Damázio
Páginas105-118

Eloise da Silveira Petter Damázio. Doutoranda em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Antropologia Jurídica. Atuando principalmente nos seguintes temas: relação poder-saber, discurso colonial, pós-colonialismo e pensamento descolonial.

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1 Considerações Iniciais

Para muitos pensadores jurídicos, tanto o direito como o estado, por estarem vinculados a tradição moderna, associados a razão, são considerados como soluções universais que devem ser aplicadas em toda parte. "As 'leis do direito' são abordadas como 'leis naturais' ou as 'leis da natureza'"1 Isto é, confundem uma forma de direito com O Direito.

Santos2 afirma que modelo atual de estado é "homogeneizador porque implica uma só nação, cultura, direito, exército e religião." Tal modelo predomina nas cabeças das elites, da cultura e até nas forças progressistas, que são ou podem ser aliadas nesse processo. Verifica-se então "a importância em defender outro tipo de unidade na diversidade, que não seja simplesmente aceita, senão celebrada."

A partir dessas reflexões, o presente trabalho propõe que o pensamento descolonial e a interculturalidade podem ser utilizados como ferramentas teóricas capazes de permitir uma análise da produção dos conhecimentos jurídicos, vinculando-os a colonialidade epistêmica. Assim, os fundamentos e os pressupostos da cultura jurídica moderna, antropocêntrica e ocidental, podem ser devidamente questionados.

O primeiro objetivo é realizar uma abordagem intercultural e descolonial que passa pela análise da colonialidade epistêmica e da inserção do direito ocidental moderno como forma de colonialidade. Tal direito vincula-se a uma concepção geográfica e historicamente localizada que se constituirá num modelo dominante (ponto zero de conhecimento) para julgar e definir o que é ou não jurídico. A partir deste ponto neutro de observação todas as outras formas jurídicas se transformam em primitivas, inadequadas ou são simplesmente silenciadas.

O segundo objetivo é propor uma descolonialidade e interculturalidade epistemológica dos saberes político-jurídicos, o que possibilita uma redefinição e resignificação da retórica emancipatória da modernidade, incluindo a análise de conceitos como democracia, direitos humanos e estado a partir de cosmologias e epistemologias do subalterno.

2 A Colonialidade Epistêmica e a Epistemologia do Ponto Zero

Colonialidade é um dos temas centrais dos estudos latino-americanos descoloniais. Realiza-se uma reflexão a sobre as heranças coloniais do Império espanhol e português na América durante os séculos XVI ao XX. A partir disso, procura-se intervir decisivamente na discursividade própria das ciências modernas para configurar outro espaço para a produção de conhecimento, uma forma distinta dePage 110 pensamento, um paradigma outro, a possibilidade de falar sobre "mundos e conhecimentos de outro modo".3

Há uma leitura desconstrutiva da visão tradicional da modernidade e uma análise da subalternização cultural e epistêmica das culturas não europeias. Podem ser considerados como autores vinculados a esta corrente Enrique Dussel, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Santiago Castro-Gómez, Ramón Grosfoguel, Catherine Walsh, entre outros.

O termo colonialidade4 é distinto de colonialismo, trata-se de diferentes momentos históricos. Colonialidade, conforme Mignolo5, é um conceito maleável que opera vários níveis. Refere-se, em um primeiro momento, a uma expressão abreviada de matriz colonial de poder que Quijano batizou com o nome de padrão colonial de poder. O conceito de colonialidade também torna visível o outro lado da modernidade, a colonialidade. Em terceiro lugar, colonialidade designa histórias, subjetividades, formas de vida, saberes e subjetividades colonizadas, a partir dos quais surgem as respostas descoloniais. Se por um lado a colonialidade é a cara invisível de modernidade é também, por outro lado, a energia que gera a descolonialidade. Assim, o termo modernidade/colonialidade aponta para a coexistência da retórica salvacionista da modernidade com a lógica de exploração, controle, manipulação (conversão, civilização, desenvolvimento e modernização, democracia e mercado).

Quijano6 utiliza o termo colonialidade do poder para designar a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça. Trata-se de uma "construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo." A ideia de raça foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo das relações de dominação que a conquista exigia. Assim, foi classificada a população da América e, posteriormente, do mundo, a partir desse novo padrão de poder.

A perspectiva de superioridade/inferioridade além de estar na base do conceito de superioridade étnica, também implica a superioridade epistêmica. O conhecimento produzido pelo homem branco é geralmente qualificado como científico, objetivo e racional, enquanto que aquele produzido por homens de cor (ou mulheres) é mágico, subjetivo e irracional.7 Esta dimensão, a colonialidade epistêmica ou do saber, não apenas estabelece o eurocentrismo como perspectiva única de conhecimento, mas também descarta as outras produções intelectuais.

Para Mignolo8 a diferença colonial epistêmica parte de uma pressuposição situada sobre um julgamento antecipado de que os legados de línguas e pensamentos não europeus são de algum modo deficientes. A hipótese é que as pessoas que falam e são educadas nessas línguas são de alguma maneira epistemicamente inferiores.

A superioridade atribuída ao conhecimento europeu em muitas áreas da vida foi um aspecto importante da colonialidade do poder. Os conhecimentos subalternos foram excluídos, omitidos, silenciados e ignorados. Desde a Ilustração, no século XVIII, esse silenciamento foi legitimado pela ideia de que tais conhecimentos representavam uma etapa mítica, inferior, pré-moderna e pré-científica do conhecimento humano. Somente o conhecimento gerado pela elite científica e filosófica da Europa era considerado como conhecimento verdadeiro, já que era capaz de fazer abstração de seus condicionamentos espaço-temporais para se localizar em uma plataforma neutra de observação. Formando assim, o que Castro-Gómez9 chama de epistemologia do ponto zero, o ideal último do conhecimento científico.

Localizar-se no ponto zero significa

[...] ter o poder de nomear pela primeira vez o mundo; de traçar fronteiras para estabelecer quais conhecimentos são legítimos e quais são ilegítimos, definindo quais comportamentos são normais e quais são patológicos. Por isso, o ponto zero é o do começo epistemológico absoluto, mas também o do controle econômico e social sobre o mundo. Localizar-se no ponto zero equivale a ter o poder de instituir, de representar, de construir uma visão sobre o mundo social e natural reconhecida como legítima e autorizada pelo Estado. Trata-se de uma representação na qual os "varões ilustrados" se definem a si mesmos como observadores neutros e imparciais da realidade.10

A epistemologia do ponto zero é, portanto, aquela que elimina as outras alternativas possíveis e constrói uma visão hegemônica e deslocalizada, assumindo um ponto de vista universalista, neutro e objetivo. Em um primeiro momento, para se estabelecer no ponto zero, as ciências humanas se apropriaram do modelo da física com a finalidade de criar seu objeto a partir de um tipo de observação imparcial e asséptica.

Descartes expressa com claridade a ideia de que a sociedade pode ser observada de um lugar neutro de observação, não contaminado pelas contingências relativas ao espaço e ao tempo. Descartes substitui Deus, fundamento do conhecimento na teopolítica do conhecimento da Europa da Idade Média, pelo homem ocidental, fundamento do conhecimento na Europa dos tempos modernos.

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Essa verdade universal que está para além do tempo e do espaço, o acesso privilegiado às leis do universo e a capacidade de produzir conhecimento e teorias científicas, tudo isso está agora situado na mente do homem ocidental. O ego cogito cartesiano (penso, logo existo)11 é o fundamento das ciências modernas ocidentais. Descartes conseguiu proclamar um conhecimento que não é situado, mas sim universal, faz isso ao criar um dualismo entre mente e corpo e entre mente e natureza.12

Dando continuidade a Descartes no projeto ilustrado de uma ciência do homem, Hume afirma que do mesmo modo como a física conseguiu estabelecer as leis que governam o mundo celeste, a ciência do homem deve aplicar o mesmo método para estabelecer as leis que governam o mundo terrestre da vida social.13 E como estas leis, segundo Hume, encontram-se ancoradas na natureza humana, a nova ciência tomará como objeto de estudo as faculdades cognitivas e perceptivas do homem, com a finalidade de explicar, através da observação e da experiência, as estruturas básicas que regem seu comportamento social e moral.14

A pretensão de Hume e Descartes é converter à ciência em uma plataforma inobservada de observação a partir da qual um observador imparcial se encontre na capacidade de estabelecer as leis que governam tanto ao cosmos como a polis. A primeira regra para se chegar ao ponto zero é então a seguinte, qualquer outro conhecimento que não responda às exigências do método analítico-experimental deve ser radicalmente descartado15

Uma vez instaladas no ponto zero, as ciências do homem passam a construir um discurso sobre a história e a natureza humana, nesse discurso os povos colonizados pela Europa...

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