A argüição de descumprimento de preceito fundamental e a manipulação dos efeitos de sua decisão

AutorProf. Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira; Prof. Rodrigo Pieroni Fernandes
CargoProcurador do Estado de São Paulo; Procurador do Estado de São Paulo
Páginas1-29

Procurador do Estado de São Paulo, membro eleito do Conselho da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (2001/2002), mestrando em Direito do Estado pela PUC-SP. Procurador do Estado de São Paulo, mestrando em Direito do Estado pela PUC-SP

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1. Introdução

A Constituição Federal é a norma fundamental, ou seja, é nela que buscamos fundamento de validade das normas existentes no ordenamento jurídico12, ocupando o último escalão da pirâmide de Kelsen. Todas as situações jurídicas devem com ela guardar relação de compatibilidade, sob pena de nulidade3. Page 2

Na verdade, como bem assentado por José Afonso da Silva4, "todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas da Constituição Federal".

No sistema constitucional pátrio está presente a característica da rigidez da Constituição5, sobressaindo-se o princípio da supremacia das normas constitucionais, que na representação idealizada por Pinto Ferreira6 é "como uma pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político".

Com o escopo de assegurar essa supremacia constitucional, há previsão na própria Carta Fundamental de toda uma "mecânica voltada a policiar a ordem jurídica"7, tanto no que concerne ao controle da constitucionalidade propriamente dito, como no tocante à tarefa específica de dar efetividade às normas constitucionais.

Quanto à inconstitucionalidade, podemos dizer que consiste na incompatibilidade do conteúdo de determinado ato normativo ou comportamento8, ou do seu processo de elaboração9 com a Constituição Federal.

Regina Macedo Nery Ferrari salienta que "inconstitucional pode ser a ação ou omissão que ofende, no todo ou em parte a Constituição"10. É dizer, há também inconstitucionalidade quando ocorre a omissão do Poder Público que deixa de regulamentar dispositivo constitucional. "A incompatibilidade entre a conduta positiva exigida pela constituição e a conduta negativa do Poder Público omisso, configura-se na chamada inconstitucionalidade por omissão"11.

De antemão, já salientamos que a inconstitucionalidade não se confunde com o descumprimento de preceito fundamental. "O conceito de 'descumprimento' ultrapassa o âmbito da mera inconstitucionalidade, podendo Page 3 açambarcar até mesmo fatos do mundo concreto contrários à 'realidade' constitucional (realidade normativa, mundo do dever ser)"12.

Pode-se dizer que o descumprimento não se trata especificamente de uma inconstitucionalidade, tampouco de uma contrariedade à Constituição, mas de violação a determinados preceitos, os fundamentais. É dizer, trata-se de uma incompatibilidade com parâmetro mais restrito que a inconstitucionalidade, de âmbito menor.

Em ambas hipóteses há incompatibilidade com a Constituição Federal, e urge ser expurgada do ordenamento jurídico. Com esta finalidade, sanando o vício de inconstitucionalidade e aplicando a sanção de nulidade existe o controle de constitucionalidade, que no ordenamento pátrio é misto ou híbrido13, por existirem dois métodos ou sistemas para o exercício do controle repressivo de constitucionalidade14: o concentrado (ou reservado15, ou via de ação, ou abstrato, ou direto); e o difuso (ou aberto, ou via de exceção ou defesa, ou descentralizado16).

O controle difuso tem como característica a potencialidade de ser encetado por qualquer juiz ou tribunal, diante de um determinado caso concreto17, que decidirá sobre a compatibilidade de determinado ato com a Page 4 Constituição Federal, como questão prévia, imprescindível ao julgamento da lide18. Neste a declaração de inconstitucionalidade não constitui objeto principal da ação, configurando-se como questão prejudicial, ou seja, "questão de direito substantivo de que depende a decisão final a tomar no processo"19 e que fará parte da motivação do decisium, em julgamento incidenter tantum.

A decisão judicial, prolatada em processo no qual foi encetado esse controle, fará coisa julgada entre as partes e com relação restrita ao caso concreto apresentado em juízo, não vinculando outras decisões. Declarado inconstitucional, o ato normativo somente poderá ter suspensa sua execução caso a inconstitucionalidade seja definitivamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, e após a edição de resolução do Senado, nos termos do artigo 52, X, da Constituição Federal.

No controle concentrado de constitucionalidade, diferentemente, procura-se obter a declaração de inconstitucionalidade de um ato normativo em tese ou omissão20, independentemente da existência de uma lide. Já nessa via de controle, o próprio pedido da ação intentada será a inconstitucionalidade do ato, que deverá ser declarada no dispositivo da decisão, em julgamento principaliter.

No controle direto temos: a ação declaratória de constitucionalidade, a ação direta de inconstitucionalidade por ação e omissão, a ação direta interventiva e a argüição de descumprimento de preceito fundamental.

2. Argüição de descumprimento de preceito fundamental

Acima já adiantamos nosso entendimento que a Argüição de descumprimento de preceito fundamental constitui mais uma das formas de controle concentrado de constitucionalidade21, prevista no artigo 102, § 1º, da Constituição Federal 22, produto da atividade do Poder Constituinte Originário. Page 5

Já se disse23 que "com a argüição, tem-se a complementação do sistema pátrio de controle da constitucionalidade, com uma medida extremamente aberta à correção dos atos estatais24 violadores da Constituição".

Com efeito, a argüição vem somar-se aos mecanismos assecuratórios do princípio da supremacia constitucional, com a particularidade de tutelar com especificidade a supremacia dos preceitos fundamentais da Carta Magna.

Elival da Silva Ramos25 não esposa esse entendimento. Após tecer críticas ao Legislador Constituinte devido a parcimônia na previsão do novel instituto, consigna:

"(...) não nos parece aceitável extrair-se de um dispositivo com um conteúdo significativo tão fluído, como é o caso do § 1º do art. 102, a interpretação de que ali se permitiu ao Legislador Infraconstitucional a instituição de um instrumento a mais voltado ao controle da constitucionalidade de leis ou atos normativos diante da Constituição Federal, controle esse, conforme gizado pelo Pretório Excelso, de natureza extraordinária, a exigir expressa manifestação de vontade do Constituinte."

Em que pese esse posicionamento, pensamos que a argüição de descumprimento de preceito fundamental se insere no rol dos institutos voltados ao controle concentrado da constitucionalidade26, mormente porque dotado da característica específica, como já adiantamos, de tutela dos preceitos constitucionais fundamentais.

Como ressalta André Ramos Tavares27:

"Não obstante admitir-se a possibilidade de que mais de uma ação preste-se ao mesmo objetivo, a verdade é que, com a introdução da argüição, para ela desviam-se todos os descumprimentos de preceitos fundamentais da Constituição" . Page 6

2. 1 O § 1º do artigo 102 da Constituição

O Pretório Excelso entendeu que a previsão constitucional não era auto- aplicável28, sendo imprescindível a lei regulamentadora para o exercício do direito de propor a argüição.

Como se constata no próprio texto constitucional, a apreciação da argüição do descumprimento de preceito fundamental será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal "na forma da lei".

Estamos diante, portanto, de uma "norma constitucional de eficácia limitada ou reduzida, definidora de princípio institutivo", na respeitada classificação de José Afonso da Silva, em Aplicabilidade das normas constitucionais, como leciona Walter Claudius Rothenburg 29.

A regulamentação da argüição de descumprimento de preceito fundamental somente veio em 03 de dezembro de 1999, pela Lei nº 9.88230.

Desse ponto em diante, procuraremos enfatizar as inconstitucionalidades advindas do regramento infraconstitucional dispensado ao instrumento em testilha.

2. 2 Legitimação Ativa

Os legitimados ativos para propor a argüição estão elencados no artigo 2º, inciso I da Lei nº. 9.882/99 e são os mesmos da ação direta de inconstitucionalidade31: Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados, Mesa de Assembléia Legislativa, Governador de Estado, Procurador-Geral da República, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Foi vetado o inciso II, que versava sobre a legitimidade de "qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público" propor a argüição, com fundamento de se conceder um acesso irrestrito, direto, e individual ao Supremo Tribunal Federal, que é incompatível com o controle concentrado de constitucionalidade, e ensejaria uma elevação excessiva do número de feitos a Page 7 serem apreciados pela Corte Suprema. Tal veto foi alvo de severas críticas da doutrina de Zeno Veloso32 e Maria Garcia33.

2. 3 Objeto

Logo no artigo 1º da Lei está exposto o objeto da argüição, que se resume em "evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público" (caput) e "quando for relevante o fundamento da controvérsia...

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