O desejo como definidor da homossexualidade

AutorAnderson Ferrari
Páginas153-172
Niterói, v. 7, n. 2, p. 15 3-172, 1. sem. 2007 Niterói, v. 7, n. 2, p. 15 3-172, 1. sem. 2007
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O DESEJO COMO DEFINIDOR
DA HOMOSSEXUALIDADE
Anderson Ferrari
Resumo: O presente trabalho é resultado do
convívio com as pessoas que compõem três
grupos gays organizados – o GGB, o CORSA e
o MGM, em que foi possível entrar em conta-
to com suas formas de agir, de pensar e de se
construírem como homossexuais. Os grupos
gays tornaram-se locais privilegiados na cons-
trução das “verdades” a respeito do que vem
a ser a homossexualidade e o homossexual.
Portanto, o objetivo é verificar como estão
contrib uindo para f ortalecer a articulação
entre discursos, saberes e poder na constitui-
ção dos membros como homossexuais. Neste
sentido, o desejo adquiriu extrema importân-
cia na definição da homossexualidade. Que
idéias de desejo estão sendo colocadas em
jogo e que estão servindo para identificar a
homossexualidade? Como o entendimento do
desejo e sua identifi cação c om um grupo
estão dando origem à homossexualidade e ao
homossexual?
Palavras-chave: educação; homossexualida-
des; discursos; desejo.
Numa passagem do conto de Caio Fernando Abreu (1991), “Pela Noite”, uma
das personagens, Pérsio, recupera uma situação vivida em sua adolescência. Classifi-
cação, definição, identidade e susto misturam-se nas lembranças desta personagem
ficcional. No entanto, as relações que se estabelecem no conto ultrapassam a ficção.
– Sabe que quando eu saía na rua as meninas gritavam biiiiiiiiicha! Não, não era bicha! Nem
veado. Acho que era maricas,qualquer coisa assim.
– Fresco ? Santiago disse. – Era fresco que se dizia.
– Isso. Fresco, elas gritavam. Todas gritavam juntas (Ai ai, elas gritavam). Bem alto, elas
queriam ferir. Elas queriam sangue. E eu nem era, porra, eu nem sabia de nada. Eu não
entendia nada. Eu era superinocente, nunca tinha trepado. Só fui trepar aqui, já tinha quase
vinte anos. E cheio de problemas, beijava de boca fechada. [...]
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O desejo como definidor da homossexualidade
[...] Mas era difícil lá. Aquelas garotas todas gritando de manhã bem cedo, quando eu ia
para o colégio. Todos os dias. Ao meio-dia, quando voltava. Todos, todos os dias. God! que
inferno. Semana após semana, ano após ano. Eu já não tinha coragem de sair de casa. Ficava
chorando pelos cantos, bem tanso, me perguntando apavorado meu Deus, meu Deus, será
que sou mesmo isso que elas gritam que eu sou? [...]
– Só tinha um na cidade, lembra?
– Lembro. O seu Benjamin, o barbeiro. Ele se matou, sabia?
– Claro, não é? E fez muito bem. Sábia decisão. Só podia mesmo era cortar os pulsos.
– Ele se enforcou. Bem no meio da praça. Num domingo de Páscoa. Na figueira. O padre
encontrou na hora de abrir a porta da igreja, antes da missa.
– Perfeito, perfeito.[...]
– Triste,você disse triste? Era medonho, cara. Era duma solidão horrenda, era dum desespero
pânico. Era duma. Duma agressão, de um desprezo, de uma crueldade. Você não lembra?
A situação vivenciada pela personagem é bem familiar àqueles que se sentem
homossexuais, seja porque também já vivenciaram momentos semelhantes, ou mes-
mo porque temem passar por este tipo de revelação, classificação e agressão. A
princípio, pode parecer que essa relação ocorra exclusivamente em espaços em que
o homossexual é minoria e em que a homossexualidade é um assunto marginal a ser
escondido: a rua, a escola, o grupo social. Mais do que simplesmente agressão, este
tipo de acontecimento revela algo muito mais profundo, capaz de ser reproduzido
também em espaços em que não se espera, como, por exemplo, nos grupos gays.
Nesses lugares, também se classifica, se define, se impõe identidades e se assusta.
Não como uma agressão, mas seguindo a mesma lógica: utilizando o desejo e um
entendimento do que é ser homossexual, para, ao mesmo tempo, definir uma iden-
tidade e trazer o classificado para o grupo.
É esse aspecto da construção das identidades homossexuais que será analisado
neste artigo: o imperativo do desejo na sua definição e na sua constituição como
processo educativo. Partindo do pressuposto de que as identidades são construções
sociais intermináveis, estabelecidas a partir de uma rede discursiva de saber e de
poder, é possível pensar a ação dos diferentes espaços pelos quais circulamos como
educativos. Neste sentido, é importante problematizar e colocar em discussão o lu-
gar que os discursos e as instituições adquiriram para a construção dos sujeitos. Mais
especificamente estou interessado nesse processo de construção que ocorre no inte-
rior dos grupos gays organizados, visto que, nos últimos anos, sobretudo após o
advento da aids na década de 1980, estes são espaços privilegiados já, que se torna-
ram os responsáveis por dizer as “verdades” do que vem a ser a homossexualidade e
o homossexual. Assim sendo, assumem para si esse poder e prazer de falar em nome
de todos os homossexuais, de “revelar” as verdades, desencavar os segredos e “ensi-
nar” comportamentos.
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