Igualdade, desigualdade e diferença: contribuições para uma abordagem semiótica das três noções

AutorJosé D’Assunção Barros
Páginas199-218

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Igualdade, desigualdade e diferença: aproximações de sentido

A igualdade é* uma noção tão antiga quanto complexa. Já de princípio, contrasta simultaneamente com duas outras noções que sempre marcaram presença análoga no decurso da história humana. Por um lado, Igualdade opõe-se a Diferença , mas, por outro lado, contraditase com Desigualdade .

Existe naturalmente uma diferença sutil envolvida nesses dois contrastes. Quando se considera o par Igualdade x Diferença (ou igual x diferente), tem-se à vista algo da ordem das essências: uma coisa ou é igual à outra (pelo menos em um determinado aspecto) ou então dela difere.

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Podemos, no âmbito de certo número de indivíduos, considerar sua igualdade ou diferença em relação ao aspecto sexual, ao aspecto profissional, ao aspecto étnico, e assim por diante. A oposição entre Igualdade e Diferença, se quisermos colocar a questão numa perspectiva semiótica, é da ordem dos contrários (de duas essências que se opõem).

Já o contraste entre Igualdade e Desigualdade refere-se quase sempre não a um aspecto essencial, mas a uma circunstância associada a uma forma de tratamento (mesmo que essa circunstância aparentemente se eternize no interior de determinados sistemas políticos ou situações sociais específicas). Tratam-se dois ou mais indivíduos com igualdade ou desigualdade relativamente a algum aspecto ou direito, conforme sejam concedidos mais privilégios ou restrições a um e a outro (isso pode ocorrer independentemente de serem eles iguais ou diferentes no que se refere ao sexo, à etnia ou à profissão). Se for verdade que as mulheres podem receber tratamento desigual em relação aos homens no que concerne às oportunidades de trabalho (e aqui se fala na desigualdade entre os sexos ), será também possível tratar desigualmente dois homens que em nada difiram em relação a alguns de seus aspectos essenciais (idade, sexo, profissão etc.), ou seja, Desigualdade e Diferença não são noções necessariamente interdependentes, embora possam conservar relações bem definidas no interior de determinados sistemas sociais e políticos.

Distintamente da oposição por contrariedade que se estabelece entre Igualdade e Diferença, a oposição entre Igualdade e Desigualdade é da ordem das contradições. As contradições são sempre circunstanciais, enquanto os contrários opõem-se ao nível das essências. As contradições são geradas no interior de um processo, têm uma história, aparecem num determinado momento ou situação, e pode-se dizer que os pares contraditórios integram-se dialeticamente dentro dos processos que os fizeram surgir. Por seu turno, os contrários não se misturam (amor e ódio, verdade e mentira, igual e diferente), e dessa forma fixam muito claramente o abismo de sua contrariedade. Logo veremos que essa distinção entre contrários e contradições tem suas implicações, embora no momento isso possa soar como filigrana semiótica.

Para o caso que presentemente tratamos, é preciso considerar primeiramente que as diferenças são inerentes ao mundo humano – para não falar do mundo natural. De modo geral, a ocorrência de diferenças de toda a ordem não pode ser evitada por meio da ação humana (embora se deva esclarecer desde já que nem todas as diferenças são naturais, e muitas são construídas culturalmente) 2 . Vale ainda dizer que a ocorrência de diferençasPage 201no mundo social está atrelada à própria diversidade inerente ao conjunto dos seres humanos, seja no que se refere a características pessoais (sexo, etnia, idade), seja no que se refere a questões externas (pertencimento por nascimento a esta ou àquela localidade, ou cidadania vinculada a este ou àquele país, por exemplo).

O reconhecimento da inevitabilidade da ocorrência de diferenças reflete-se no fato de que são raros projetos políticos que se proponham a lutar para eliminar certos tipos de diferenças, como as sexuais, etárias ou profissionais (não se fala ainda da possibilidade de eliminar ou reduzir as desigualdades sexuais, etárias ou profissionais, o que seria uma questão de outra ordem). Com relação às diferenças étnicas, existem no limite os projetos de extermínio, que seguem no entanto sendo excepcionais 3 . De um modo ou de outro, pode-se prever que sempre existirão homens e mulheres, diversificadas variações étnicas, indivíduos de várias faixas etárias, bem como profissões o mais diversas. Mas se pode sonhar que um dia essas diferenças serão tratadas socialmente com menos desigualdade. Por isso, as lutas sociais não se orientam em geral para abolir as diferenças, mas sim para abolir ou minimizar as desigualdades.

Enquanto pensar Diferenças significa se render à própria diversidade humana, já abordar a questão da Desigualdade implica considerar a multiplicidade de espaços em que esta pode ser avaliada. Avalia-se a Desigualdade no âmbito de determinados critérios ou de certos espaços de critérios: rendas, riquezas, liberdades, acesso a serviços ou a bens primários, capacidades. Indagar sobre a Desigualdade significa sempre recolocar uma nova pergunta: Desigualdade de quê? Em relação a quê? Conforme foi ressaltado, a Desigualdade é sempre circunstancial, seja porque estará localizada historicamente dentro de um processo, seja porque estará necessariamente situada dentro de determinado espaço de reflexão ou de interpretação que a especificará (um determinado espaço teórico definidor de critérios, por assim dizer). Falar sobre Desigualdade implica nos colocarmos em um ponto de vista, em certo patamar ou espaço de reflexão (econômico, político, jurídico, social), mais ainda, implica arbitrar ou estabelecer critérios mais ou menos claros dentro de cada espaço potencial de reflexão.

Vale acrescentar, também, que qualquer noção de Desigualdade não pode ser senão circunstancial em parte, porque estão sempre sujeitos a um incessante devir histórico os próprios critérios diante dos quais a Desigualdade poderia ser pressentida ou avaliada. As noções que afetam o mundo das hierarquias sociais e políticas transfiguram-se, entrelaçam-se e desentrelaçam-se, de acordo com os processos históricos e sociais.

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Por exemplo, nos tempos modernos, os três grandes âmbitos em que se pode estabelecer uma hierarquia social de qualquer tipo – portanto, os três grandes âmbitos que regem o mundo da desigualdade humana – são a Riqueza , o Poder e o Prestígio (pode-se discutir, ainda, a Cultura , no sentido institucionalizado). O que é falar hoje de Riqueza? É certamente falar também de Propriedade . Essas noções estão entrelaçadas na modernidade capitalista: a Riqueza encobre a Propriedade, abrangendo-a, mesmo que não se reduza a ela. Vale dizer, se toda a Riqueza, no mundo moderno, não se expressa necessariamente sob a forma de Propriedade, não há como negar, por outro lado, que a Propriedade é na atualidade uma das formas mais poderosas de expressão da Riqueza (dessa forma, a Riqueza compra a Propriedade; é a forma de acesso, por excelência, à Propriedade).

Nem sempre foi assim. Na Antigüidade, por exemplo, Riqueza e Propriedade eram noções perfeitamente desentrelaçadas. Portanto, os critérios para a avaliação da Desigualdade deveriam considerar cada uma dessas noções em separado (como espaços diferentes que integrariam a Desigualdade no sentido complexo). Na Grécia Antiga, a Propriedade significava que o indivíduo possuía concretamente um lugar no mundo (na polis ), e portanto pertencia ao mundo político com os conseqüentes direitos à Cidadania (ARENDT, 1989, p.71). Por isso, a riqueza de um estrangeiro, ou mesmo de um escravo, não substituía essa propriedade, que era exclusiva dos cidadãos, e não lhe conferia obviamente acesso ao mundo político. Percebe-se que o Poder entrelaçava-se então com a Propriedade, e ambos se situavam em um espaço de conexões em separado da Riqueza. Além de Poder, Propriedade e Riqueza, havia um quarto critério gerador de espaços de desigualdade, que era o da Liberdade. No mundo da escravidão antiga, como no mundo da escravidão moderna (o Brasil Colonial, por exemplo), a Liberdade ou a Escravidão seriam noções óbvias para serem consideradas em uma avaliação mais sistemática da desigualdade humana – isto é, se houvesse qualquer interesse, então, em avaliar no sentido mais amplo a desigualdade humana 4 .

Hoje a Liberdade de todos os indivíduos, como valor ideal e no sentido lato, é fundo comum para qualquer sociedade moderna que se declare democrática. Deixa, portanto, de ser critério a partir do qual se possa pensar a desigualdade (mas é claro que podemos pensar na liberdade de expressão ou na liberdade de ir e vir, conforme veremos depois). Por outro lado, não é necessário pontuar a Propriedade como critérioPage 203hierárquico (como faziam os antigos gregos), já que, na modernidade capitalista, a Riqueza abrangia a Propriedade. Esse contraste entre o mundo antigo e o mundo moderno é suficiente, por ora, para registrar a circunstancialidade dos próprios critérios a partir dos quais se pode pensar a questão da desigualdade social.

De resto, o que obriga a falar em circunstâncias para as questões relacionadas à Desigualdade é o fato de que qualquer desigualdade que seja imposta a um grupo ou a um indivíduo está sujeita à circunstancialidade histórica, sendo em última instância reversível. O grupo humano que está privado de determinados direitos pode reverter sua situação por meio da ação social – sua e de outros. Pelo menos em tese, não existem desigualdades imobilizadas no mundo social (enquanto no mundo das diferenças teríamos, na oposição biológica entre homem e mulher, uma realidade óbvia e inevitável, da mesma forma que os seres humanos mostram-se todos sujeitos a atravessar diferentes faixas etárias sem reversibilidade...

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