Desvio de finalidade e estado de direito

AutorSérgio Roxo da Fonseca
CargoProfessor de Direito Administrativo das Faculdades COC e de Direito Civil da Faculdade de Direito UNESP/Franca, Procurador de Justiça (aposentado).
Páginas1-5

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O principal propósito dos revolucionários de 1789 era o de constitucionalizar a monarquia francesa e não o de implantar a República. Pelo menos Mirabeau e Necker trabalhavam para a instituição de uma verdadeira monarquia constitucional1.

Deposto o rei, como resultante do desenvolvimento do processo histórico, permaneceu a idéia da construção de um Estado no qual a Administração estivesse sob e não sobre a lei. Ao Estado antigo deram o nome de Estado-Polícia e batizaram o novo com o nome de Estado de Direito. Vários autores examinaram as duas entidades jurídico-políticas2, mas certamente ganhou prestígio entre nós a síntese revelada por STASSINOPOULOS3, segundo a qual a moderna dogmática proclama que, no Estado de Direito, a Administração somente pode agir "secundum legem", nunca "contra legem" e nem mesmo "praeter legem", por não lhe caber colmatar as lacunas do ordenamento jurídico.

A jurisprudência administrativa francesa demonstrou desde logo a existência de várias dificuldades para impor um rígido controle de legalidade aos governantes.

Percebeu-se a existência de duas competências administrativas: a competência vinculada ou regrada e a competência discricionária, ambas instaladas no patamar infra-legal, portanto suscetíveis de serem sindicadas pelo órgão de controle. Se todas as competências administrativas são derivadas da lei é porque todas elas são jurídicas, ao contrário do que se passava no Estado-Polícia, permitindo concluir que nenhuma delas pode ser opaca aos olhos do controlador da legalidade4.

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Sindicar o ato vinculado não foi difícil. Sendo o ato vinculado derivado de uma ordem legislativa rigidamente redigida, o controle de sua legalidade passou a ser feito por uma operação subsuntiva. Se a norma determina a aposentadoria compulsória do servidor público aos setenta anos, deverá ser afastado do serviço ativo naquela data e não um dia antes ou um dia depois.

Muito mais complicado se apresentou o controle do ato discricionário. Tanto assim é que a doutrina dividiu-se até mesmo quanto ao diagnóstico dessa entidade jurídica.

Para QUEIRÓ5, ato vinculado é aquele derivado de uma norma atributiva de poder que revela através de seu texto um conceito teorético verdade, portanto unívoco e universal, pressuposto de um princípio causalista, definidor de categorias de espaço e tempo ou de número (quantidade). Reversamente, a discricionariedade decorreria da aplicação de uma norma atributiva de poder reveladora de um conceito de valor, da vida prática, como, por exemplo, bom pai de família, boa conduta e justo preço.

Numa posição contrária ficou a cátedra de GARCIA DE ENTERRÍA6, para quem são atos vinculados tanto aqueles derivados de conceitos normativos de valor quanto os resultantes dos conceitos teoréticos, porque ambos jurídicos. Se tais conceitos são jurídicos, são permeáveis aos olhos do órgão controlador. Um servidor público ou tem boa conduta ou não tem, "tertium non datur". Para o grande mestre espanhol, "la discrecionalidad es esencialmente una libertad de elección entre alternativas igualmente justas, o, si se prefiere, entre indiferentes jurídicos, porque la decisón se fundamenta en criterios extrajurídicos (de oportunidad, econômicos etc.) no...

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