Acúmulo e desvio funcional. Há amparo legal para deferir a indenização equivalente ao prejuízo?

AutorJosé Affonso Dallegrave Neto
Páginas246-253

Page 246

“Enriquecimento sem causa corresponde ao acréscimo de bens que se verifica no patrimônio de um sujeito, em detrimento de outrem, sem que para isso tenha havido um fundamento jurídico.”

Limongi França

1. Inexecução contratual

Na chamada quadra da inexecução contratual um caso amiúde se sobressai, qual seja a exigência ilícita para que o empregado acumule ou exerça função diversa da qual foi contratada. O dano material daí resultante deve ser reparado com a condenação da indenização equivalente?

Há corrente minoritária e, ao nosso crivo, equivocada, que entende inexistir amparo legal para o pleito de indenização por acúmulo de função, vez que somente ao radialista (Lei n. 6.615/78) o legislador conferiu expressa previsão para o pagamento do adicional de dupla função:

A figura do acúmulo de funções encontra previsão legal tão-somente no que se refere ao radialista (Lei n. 6.615/78), sendo certo que, ainda que o autor exercesse a função de padeiro e confeiteiro, no mesmo horário de trabalho, não daria ensejo ao deferimento de outro salário, ou mesmo de qualquer acréscimo salarial. (TRT 3ª R. — RO 00354-2003-026-03-00-1 — 5ª Turma, DJMG 04.10.2003 — p. 21)

Data venia, essa visão é estreita e equivocada, pois despreza todos os demais dispositivos da ordem jurídica que direta e indiretamente albergam o pleito de indenização por desvio e/ou dupla função. Senão vejamos.

Por força do art. 8º parágrafo único da CLT, o direito comum se aplica subsidiariamente ao Direito do Trabalho, desde que a lei trabalhista seja omissa e a norma civil invocada seja compatível com os princípios do direito do trabalho. É, pois, o caso dos regramentos previstos no Código Civil e que amparam o pleito de indenização por desvio ou dupla função.

Page 247

2. Locupletamento

O primeiro deles é o dispositivo que assegura a restituição do prejuízo em caso de enriquecimento ilícito:

Art. 884: Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

Ora, não há como negar a caracterização de locupletamento nos casos em que a empresa impõe ao empregado contratado para determinada função o cumprimento cumulativo ou de outras atividades de maior complexidade sem a justa compensação salarial.

DIFERENÇAS SALARIAIS. DESVIO/ACÚMULO DE FUNÇÕES. PROIBIÇÃO. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. Sempre houve remédio jurídico contra o desvio/acúmulo de função: o princípio que veda o enriquecimento sem causa, reconhecido e existente entre nós, desde o alvorecer do nosso direito; todavia, ainda que se entendesse que, antes da entrada em vigor do vigente Código Civil, não havia o que, no ordenamento jurídico pátrio, pudesse ser invocado para remediar semelhante situação, hodiernamente, o art. 884, do aludido Diploma Legal, dá remédio eficaz para resolver o problema. Um empregado celebra um contrato de trabalho, por meio do qual se obriga a executar determinado serviço, aí toleradas pequenas variações, vedadas, por óbvio, as que alterem qualitativamente e/ou se desviem, de modo sensível, dos serviços a cuja execução se obrigou o trabalhador; em situações quejandas, caracterizado resta o enriquecimento sem causa, vedado pelo direito. (TRT 15ª Reg., RO 02027-2003-042-15-15-00-8 — Ac. 3030/2006 — PATR, 4ª Turma — Rel. Juiz Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani. DJSP 3.2.06, p. 47)

Consigne-se que mesmo antes do Código Civil de 2002 já era possível postular a indenização sob o fundamento de locupletamento:

Locupletamento. Exercício de dupla função ou de função de maior valia. Demonstrado o exercício pelo operário de função de maior valia, o reconhecimento judicial do direito patrimonial correlato apenas reporá o caráter sinalagmático da relação havida, afastando a indesejável figura do locupletamento ilícito. (...). (TRT, 10ª Região, RO 2798/99, 3ª Turma, Rel. Juiz Douglas Alencar Rodrigues. DJU: 18.10.2000)

3. Da ilicitude da ordem patronal

Da mesma forma também se constitui ato ilícito a ordem patronal que exige o cumprimento de serviços alheios ao contrato, incluindo-se aqui os casos de desvio ou acúmulo de função. Nesse sentido é a regra do art. 483, “a”, da CLT:

Art. 483: O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: “a”: forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato;

Destarte, é inegável que o desvio funcional e a dupla função são tidos como ilícitos, na medida em que são caracterizados pela determinação unilateral do empregador e ao mesmo tempo são prejudiciais ao obreiro, o qual terá que assumir responsabilidades e

Page 248

encargos superiores aos limites do contratado. Ao assim proceder o empregador estará exorbitando seu poder de comando (jus variandi) em flagrante abuso de direito de que trata o art. 187 do Código Civil.

Tais hipóteses caracterizam até mesmo ofensa ao art. 468 da CLT, vez que entre a função ajustada na celebração do contrato e o que lhe foi imposto posteriormente haverá sensível margem prejudicial ao trabalhador, mormente quando desacompanhada da respectiva compensação salarial.

DIFERENÇAS SALARIAIS — DESVIO DE FUNÇÃO — Exercendo, o autor, atividades de maior responsabilidade do que aquelas previstas para o cargo ao qual estava vinculado, faz jus ao pagamento de diferenças salariais decorrentes de desvio funcional, com reflexos, bem como a anotação em sua CTPS da função de Operador de Produção I. Recurso provido. (TRT 4ª R.
— RO 01206-2002-022-04-00-2 — 6ª T. — Rel. Juiz Denis Marcelo de Lima Molarinho —
J. 5.11.2003)

Com efeito, caracterizado que o dano material do empregado teve por nexo causal um ato ilícito da Reclamada, a responsabilidade civil do agente se impõe nos termos do art. 927 do Código Civil:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187)1, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Observa-se, nessa hipótese, a presença dos três elementos da responsabilidade civil: o dano material (exercício de função mais qualificada sem compensação salarial), o ato ilícito (abuso do jus variandi) e o nexo causal (dano decorrente do ato ilícito patronal).

4. Desempenho de atividades afins ou correlatas

Observa-se que a caracterização do desvio ou da dupla função se dá pelo desempenho de atividades que não se relacionam com a função contratada. Na prática, tal questão não é tão simples, vez que em muitos casos o cargo contratado...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT