O direito sucessório do descendente concebido post mortem: o tratamento de portugal e a proposta de solução brasileira

AutorPedro Linhares Della Nina
Ocupação do AutorAdvogado e Professor da Universidade Candido Mendes/RJ
Páginas671-686
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O DIREITO SUCESSÓRIO DO DESCENDENTE CONCEBIDO POST
MORTEM: O TRATAMENTO DE PORTUGAL E A PROPOSTA DE
SOLUÇÃO BRASILEIRA
Pedro Linhar es Della Nina1
A. DA INTRODUÇÃO À NOVA QUESTÃO SUCESSÓRIA
Com a modernidade da sociedade brasileira, com a complexidade
estrutural das relações humanas, percebeu-se novas questões familiares novas,
muitas delas já práticas que, inevitavelmente, ocasionaram uma nova reflexão
na matéria sucessória.
A identificação do transgeneridade (genderqueer) é algo de extrema
relevância à personalidade do indivíduo e à sua dignidade. Há precedentes
interessantes, ainda que sem qualquer interferência ao direito sucessório, que
demonstram a importância de se ter medidas afirmativas, como o caso de uma
militar que foi afastada por ser transexual, que somente retornou às suas funções
por força de decisão judicial2, ou do recente precedente do TJSC que
reconheceu o gênero neutro no indivíduo3:
A questão da relação socioafetiva, que é aquele vínculo jurídico oriundo
do amor, não da carga genética/biológica, também é uma novidade que merece
aprofundamento, eis que muda toda a estrutura familiar e, por óbvio, gera
reflexo no direito sucessório. O Supremo Tribunal Federal, sensível ao
problema, fixou a Tese n.º 622, quando do julgamento do Recurso
Extraordinário n.º 898.060, em 22/09/2016, qual seja:
"A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro
público, não impede o reconhecimento do vínculo de
1 Advogado e Professor da Universidade Candido Mendes/RJ, mestre em Ciências Jurídicas pelo
UAL-Lisboa, pós-graduado em Direito Empresarial e em Litigation, ambos pela FGV-Rio de
Janeiro. E-mail: pedro.linhar es@jucaelinhares.com.br
2 https://www.jfrj.jus.br/noticia/jfrj-sentenca-determina-retorno-de-militar-transexual-ao-servico-
ativo-da-marinha [Consult. 27 Abril 2021]
3 https://www.migalhas.com.br/quentes/343533/nem-homem-nem-mulher-pessoa-consegue-regis
tro-de-genero-neutro [Consult. 27 Abril 2021]
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filiação concomitante baseado na origem biológica, com os
efeitos jurídicos próprios"
Porém e este é o ponto lateral no presente texto há grande anseio
para se descobrir em qual momento há o início da vida, sendo certo que o
Direito Civil clássico tem o manifesto viés natalista, em que a capacidade
adquire-se com o nascimento com vida, sendo resguardado direitos ao nascituro.
Modernamente, é de se destacar, seja por meio de precedentes4, seja por força
4 Há julgados extremamente interessantes que concedem o pagamento de seguro automotivo
obrigatório (DPVAT) por força de atropelamento de mulher grávida que sofreu aborto. A questão,
malgrado seja muito triste, é juridicamente relevante, eis que se reconhece que um ser, que ainda
não nasceu, morreu, devendo receber o valor securitário. Segue a ementa do julgado do STJ:
“DIREITO CIVIL. ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. ABORTO. AÇÃO DE COBRANÇA.
SEGURO OBRIGATÓRIO. DPVAT. PROCEDÊNCIA DO P EDIDO. ENQUADRAMENTO
JURÍDICO DO NASCITURO. ART. 2º DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. EXEGESE SISTEMÁTICA.
ORDENAMENTO J URÍDICO QUE ACENTUA A CONDIÇÃO DE PESSOA DO NASCITURO.
VIDA INTRAUTERINA. P ERECIMENTO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. ART. 3º, INCISO I, DA LEI
N. 6.194/1974. INCIDÊNCIA.
1. A despeito da litera lidade do art. 2º d o Código Civil - que condiciona a a quisição de
personalida de jurídica ao nascimento -, o ordenamento jurídico pátrio aponta sinais de que não
há essa indissolúvel vinculação entr e o nascimento com vida e o conceito de pessoa , de
personalida de jurídica e de titularização de direitos, como pode apa rentar a leitura mais
simplificada da lei.
2. Entre outros, registr am-se como indicativos de que o d ireito brasileir o confere ao na scituro a
condição de pessoa, titular de dir eitos: exegese sistemática dos arts. 1º, 2º, 6º e 45, ca put, do
Código Civil; direito do nascitur o de receber doação, herança e de ser curatelado (ar ts. 542,
1.779 e 1.798 do Código Civil); a especia l proteçã o conferida à gestante, assegurando-se-lhe
atendimento pré-nata l (art. 8º do ECA, o qual, a o fim e ao cab o, visa a garantir o direito à vida e
à sa úde do nascitur o); alimentos gr avídicos, cuja titula ridade é, na verdade, do nascituro e não
da mã e (Lei n. 11.804/2008); no direito pena l a condiçã o de pessoa viva do nascituro - embora
não na scida - é afirmada sem a menor cer imônia, pois o crime de aborto (arts. 124 a 127 do CP)
sempre esteve alocado no título referente a "cr imes contr a a pessoa" e especificamente no
capítulo "dos crimes contra a vida" - tutela da vida humana em formação, a chamada vida
intrauter ina (MIRABETE, Julio Fa bbrini. Manual de direito penal, volume II. 25 ed. São Pa ulo:
Atlas, 2007, p. 62-63; NUCCI, Guilherme de Souza. Manua l de dir eito penal. 8 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012, p. 658).
3. As teorias mais r estritivas dos direitos do nascituro - na talista e da personalidade con dicional
- fincam raízes na ordem jurídica superada pela Constituição F ederal de 1988 e pelo Código
Civil de 2002 . O par adigma no qual foram edificada s transitava, essencialmente, dentro da
órbita dos dir eitos patrimoniais. Porém, a tualmente isso não mais se sustenta. Reconhecem-se,
corriqueir amente, amplos catálogos de dir eitos não patrimoniais ou de bens imater iais da pessoa
- como a honra, o nome, imagem, integridade mora l e psíquica, entre outros.
4. Ademais, hoje, mesmo que se adote qualquer das outra s duas teoria s r estritivas, há de se
reconhecer a titularidade de dir eitos da personalidade a o nascituro, dos quais o dir eito à vida é o
mais importan te. Gara ntir ao nascituro expectativas de direitos, ou mesmo direitos
condicionados ao nascimento, só faz sentido se lh e for gar antido também o di reito de na scer, o
direito à vida, que é dir eito pressuposto a todos os demais.

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