Os direitos humanos como política da cidadania

AutorJoão Martins Bertaso
Páginas11-26

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Compreendi minha dificuldade em falar de cidadania, despotencializada de participação e de oportunidades; frente ao processo de apropriação privada da rés pública.

O autor

1 Considerações iniciais de compreensão

Tomar os direitos humanos12 como política da cidadania é uma pretensão deveras audaciosa, um pouco daquilo que Lefort3 descreve sobre a política dos direitos humanos, oportunidade em que analisa a questão do Um (do totalitarismo) e da democracia. É o mesmo que tomar a cidadania de modo a potencializar a realização da pessoa humana. Daí a pertinência de conceber os direitos humanos como um bem de pertence da humanidade e de proteção não restrita às fronteiras dos Estados nacionais, implicando elegê-los como um bem difuso e de proteção local e global, sem radicalizar à uma interpretação universalizada de seus valores. A vincularidade com os Direitos Humanos em razão de uma relação con-vivencial e solidária de não exclusão do outro, difere daquela idealizada para a cidadania de modelo nacional,4 que se originou nos “movimentos nacionalistas que usavam aPage 12 residência e a cidadania comuns como aspecto definidor de sua “ação”.5 Do seio do povo nacional erige a legitimidade do poder político interno, amalgamando cidadania, poder político e Estado-Nação, resulta, assim, na capacidade de autogoverno de um determinado grupo social. Porém, numa sociedade globalizada e multicultural como a que se vive atualmente, a perda do sentido da concepção de cidadania tomada/enclausurada no discurso da identidade nacional, não significa o esgotamento da ideia da cidadania e de sua realização vinculada aos direitos humanos. Desse modo se possibilitam as condições de sua ressignificação, retomando seu viés emancipatório além fronteiras. Viabiliza a ideia de uma cidadania solidária, respeitosa a diversidade cultural, às diferenças e afeita ao diálogo social intercultural. Ou seja, trata-se de reconhecer a universalidde da ideia de cidadania, não mais como um ingrediente de integração de “nós” e da exlusão do “outro”, mas as condições políticas e jurídicas, que fazem as possibilidades da pessoa humana construir-se no cotidiano de suas práticas sociais. São os novos espaços de lutas da cidadania e da democracia.

Ressalta-se que se trata de superar a concepção juridicista de cidadania, concebida no âmbito do Estado Liberal de Direito, ou seja, de uma ideia legalista e de exclusividade da cidadania. Tal idéia dimensionou e ideologizou a construção das condições de negação do outro, do estrangeiro, por (des)equiparação. E justificou a seletiva participação na vida política do Estado, desidratando o potencial político do cidadão, restringindo-o a capacidade de votar e de ser votado. Assim, por essa via, o Estado pode selecionar, na forma da lei, aqueles que poderiam exercer os direitos políticos e participar do exercício do poder social instituído, dizendo diferente, daqueles que poderiam desfrutar dos benefícios da vida comunitária. Porém, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e, em especial, com o advento dos novos direitos advindos fundamentalizados na Constituição Federal de 1988, não é mais possível a sustentação de tal ideia de cidadania, reduzida a dimensão juridicista estatalista.

A cidadania com vínculos nos direitos humanos não se vê restringida ao exercício do voto, a nacionalidade ou a prestação obrigatória de alguns serviços, tais como o serviço militar ou eleitoral, entre outros6. A cidadania é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, assim como é a dignidade e o desenvolvimento humano, que densificam as liberdades e todo o elenco dos direitos que nos constitui como sociedade política, solidária e humanizada. O Estado brasileiro e sua instrumentalidade institucional, a partir de 1988, foram transformados em sujeito de obrigação sócia,7 e está para manter, sustentar ePage 13 promover, na medida da dignidade humana, todos os direitos de liberdade, de igualdade e de diferença, mais aqueles sociais (coletivos e difusos), sob bases de desenvolvimento material, para dar substancialidade à cidadania. As condições de materialidade fática que requer a realização da cidadania resultam da efetivação de um conjunto de direitos e de obrigações fundamentais sociais (individuais e coletivas), sob a ótica da proporcionalidade e do equilíbrio que demandam os interesses individuais, coletivos e sociais. Trata-se de uma cidadania onde o sujeito/cidadão é concebido como um ser concreto, para além de uma abstração jurídica, para além de um ponto de convergência de normas, lembrando Hans Kelsen.

Penso a cidadania com vincularidade nos Direitos Humanos. Um pouco do que fala Warat:8 “Os direitos do homem são direitos do outro homem [...] são os deveres do homem para com os outros homens. São também meus direitos frente aos outros". A partir de tais pressupostos referenciais pode-se pensar as relações intra e interpessoais de desenvolvimento humano e social digno.9 Tais relações se sustentam na premissa de que o Eu tende a se transformar em sujeito de desejo e de reconhecimento, implicando acolhimento e respeito ao direito do outro – como não eu – de ser reconhecido e considerado. Trata-se de viabilizar uma cidadania solidária, de apostar em práticas sociais aferidas na perspectiva da dignidade humana.

2 Interação Sinérgica: cidadania e direitos humanos

O Novo Soberano global vem de genética programada para policiar e controlar a alteridade; é o desafio maior da cidadania neste início de milênio.

O autor

Na perspectiva dos direitos humanos, ressalta a dignidade de todos os homens e mulheres, que foi fundamentalizada pelos Estados Constitucionais de Direito para viabilizar as condições de funcionalidade prática às garantias, a promoção e a proteção daqueles bens e valores. Os atuais modelos de Estado, acentuo, possuem obrigações e responsabilidades partilhadas locais e globais. Tais obrigações e responsabilidades estão para proteger todas as formas de liberdades, aPage 14 iniciar pelas garantias às liberdades negativas, originada das doutrinas liberais. Como se trata de igual liberdade para todos, a cidadania não se reduz às garantias individualistas,10 advindas com a primeira Declaração de Direitos (1789), que representou um avanço em relação ao modelo de sociedade hierárquica medieval.11

Ocorre que os direitos humanos são de natureza individual e coletiva, como também de cunho cultural, motivo pelo qual Boaventura de Souza Santos tem sinalizado que a “sua abrangência global será obtida à custa de sua legitimidade local”.12 De tal modo, independentemente dos constrangimentos culturais, étnicos, ideológicos e raciais, a realização da cidadania tanto comporta as ações de reconhecimento daqueles cidadãos que se encontram excluídos do processo social que remete aos avanços trazidos pelo Estado Social, onde a idéia de redistribuição está relacionada com o problema de injustiça econômica, quanto daqueles grupos esquecidos, não reconhecidos e ou desconsiderados pelos poderes sociais, onde as formas de não reconhecimento os remetem ao patamar das injustiças simbólicas ou culturais, conforme fala Nancy Fraser.13

Salienta-se que uma política de cidadania envolvida com o reconhecimento social, pela inclusão e pela dignidade de todos, ancora um modo de organizar-se da sociedade na qual os direitos funcionam como condição para as liberdades, a igualdade, a solidariedade, o respeito às diferenças, à participação efetiva no encaminhamento das questões coletivas, sem a necessidade de os cidadãos estabelecerem delegações excessivas.14 Essa afirmação se complementa na idéia com a qual Touraine se reporta às leis e regras de organização da sociedade.

Devem pôr-se ativamente a serviço da liberdade do sujeito, que seria esmagado pela racionalidade instrumental e também pela obsessão da identidade, se não fosse protegida pela lei e as normas, pelo espírito das instituições e os recursos judiciários.15

Proponho a ressignificação da cidadania, num primeiro plano, como uma reação política da negação do duplo constrangimento que os poderesPage 15 contemporâneos estabelecem para transformar os cidadãos em consumidores militantes do mercado e/ou defensores arraigados a determinados valores locais. Tanto o Estado quanto o Mercado estão envolvidos com o princípio da emancipação via regulação, como se refere Boaventura de Souza Santos,16 tendendo à reprodução da desigualdade econômica e ao desaparecimento da diversidade cultural.17

Penso que a cidadania enquanto política dos direitos humanos tende a legitima os cidadãos no direito de agir em defesa da vida e apostando numa sociedade que pode se sustentar em cuidados mútuos; há que reconhecer o direito à diferença, considerando as culturas particulares – suas diversas dimensões espaciais e temporais, local e global –, com suas respectivas articulações e inter-relações. Como já se viu, a legitimação da vida social no âmbito de um Estado Constitucional Democrático se viabiliza tanto pelo respeito a soberania popular, como expressão maior do conceito de sufrágio universal, tanto quanto por um ordenamento ético e juridicamente aferido pela dignidade e pelos direitos humanos. Para Habermas a legitimação pelos direitos humanos envolve uma nova maneira de agir do cidadão, que os tomam para viabilizar uma defesa ética da não conquista predatória,18 em defesa da dignidade de todos os diferentes agrupamentos sociais, e no dever de compartilhar cuidados para preservarem-se de uma determinada forma de desenvolvimento capitalista de produção e de acumulação desmedida.19 Em trânsito para um estado de solidariedade social, ambiental e de interações humanas sustentáveis, a cidadania, além de possuir uma forma procedimental, deve ser tomada como meio de proporcionar dignidade a cada grupo e a cada...

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