Do sujeito em seu ponto de ebulição: o anacronismo narrativo, o exotismo e a imagem em El santo, de César Aira

AutorRenato Bradbury de Oliveira
CargoDoutorando no Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas176-193
|boletim de pesquisa nelic, florianópolis, v. 20, n. 32, 2020|
doi:10.5007/1984-784X.2020.e82981 176
DO SUJEITO EM SEU PONTO DE EBULIÇÃO:
O ANACRONISMO NARRATIVO, O EXOTISMO
E A IMAGEM EM EL SANTO, DE CÉSAR AIRA
Renato Bradbury de Oliveira
UFSC - CAPES
RESUMO: Este texto parte da ideia batailliana de um “sujeito em seu ponto de ebulição” para pensar
alguns aspectos da narrativa El santo (2015) de César Aira: o anacronismo narrativo, o exotismo e
a imagem. O monge milagreiro, protagonista da narrativa, é esse sujeito em ponto de ebulição que
está implicado (seu corpo, sua experiência) na dispendiosa dinâmica dos acontecimentos no mundo.
Argumenta-se que essa implicação parece deslocar a subjetividade para a ordem do impessoal, já
que a única instância pessoal – a voz anacrônica do narrador – segue a lógica do exotismo de trazer
o silêncio da imagem para dentro da linguagem: não há a organização das experiências visando
um desfecho narrativo (a comunicação de um saber adquirido); pelo contrário, toda a sucessão de
acontecimentos não mostra nada além de um gasto de energia sem retorno a partir de um sujeito
em seu ponto de ebulição (a comunicação de um excesso).
PALAVRAS-CHAVE: César Aira; Dispêndio; Impessoal.
FROM THE SUBJECT AT IT’S BOILING POINT:
NARRATIVE ANACHRONISM, EXOTICISM
AND IMAGE IN CÉSAR AIRA’S EL SANTO
ABSTRACT: This text starts from the Bataillian idea of a “subject at its boiling point” to think about
some aspects of the narrative El santo (2015) by César Aira: the narrative anachronism, the exot-
icism and the image. The miracle maker monk, the narrative protagonist, is this subject at boiling
point who is implicated (his body, his experience) in the costly dynamics of events in the world. It is
argued that this implication seems to displace subjectivity into the order of the impersonal, since the
only personal instance — the anachronistic voice of the narrator — follows the logic of exoticism
in bringing the silence of the image into language: there is no organization of experiences aimed
at a narrative outcome (the communication of an acquired knowledge); on the contrary, the whole
succession of events shows nothing but an expenditure of energy without return from a subject at his
boiling point (the communication of an excess).
KEYWORDS: César Aira; Expenditure; Impersonal.
Renato Bradbury de Oliveira é doutorando no Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade
Federal de Santa Catarina.
|boletim de pesquisa nelic, florianópolis, v. 20, n. 32, 2020|
doi:10.5007/1984-784X.2020.e82981 177
DO SUJEITO EM SEU PONTO DE EBULIÇÃO:
O ANACRONISMO NARRATIVO, O EXOTISMO
E A IMAGEM EM EL SANTO, DE CÉSAR AIRA
Renato Bradbury de Oliveira
No prefácio ao ensaio A parte maldita, Georges Bataille afirma que seu
foco de investigação é o movimento da energia sobre a terra, seu excedente
que se traduz, em suas palavras, na “efervescência da vida”.1 O próprio Bataille,
em sua condição de investigador, estaria implicado naquele movimento da
energia sobre o globo terrestre:
Com efeito, a ebulição que tenho em vista, a ebulição que anima o globo, é tam-
bém minha ebulição. Assim, esse objeto de minha pesquisa não pode ser distin-
guido do próprio sujeito, mas devo ser mais preciso: do sujeito em seu ponto de
ebulição. Desse modo, antes mesmo de encontrar uma dificuldade para receber
seu lugar no movimento comum dos pensamentos, meu empreendimento se cho-
cava com o obstáculo mais íntimo, que aliás fornece o sentido fundamental do
livro. [...]
Minha pesquisa visava a aquisição de um conhecimento, exigia a frieza, o cálculo,
mas o conhecimento adquirido era o de um erro que está implicado na frieza ine-
rente a todo cálculo.2
Em El santo,3 romance de César Aira publicado em 2015, na Espanha, pela
Penguin Random House, há uma relação de implicação do pensamento na di-
nâmica dos acontecimentos que entram em cena. Esses acontecimentos ir-
rompem no tecido narrativo e são de ordem impessoal, como as intempéries,
as coincidências e os desencontros; de todo modo, aludem à desordem e à
sobredeterminação de forças, ao gasto de energia excedente que, em Bataille,
se torna “apreensível” a partir da irradiação solar, da luz.4 Todavia, essa pos-
sibilidade de apreensão está situada em experiências-limite do pensamento:
na teoria batailliana, seus exemplos seriam a festa, o êxtase, o sacrifício e o
1 BATAILLE, Georges. A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”. Trad. Júlio Castañon
Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica, 2013 [E-book], §58.5.
2 Ibidem, §59.2, itálico do autor.
3 AIRA, César. El santo. Barcelona: Penguim Random House, 2015.
4 Bataille em A parte maldita (2013, §80.4) alude ao excedente de energia a partir da irradiação
da luz solar, que é infinita e gratuita, isto é, não há contrapartida. Daí o sentido de uma acumu-
lação de riqueza que se traduz na atuação (ou exuberância) da matéria viva em geral, tomada
como o efeito da dissipação da luz no globo terrestre — o homem participa desta “operação
gloriosa” que é o dispêndio, e sua soberania no mundo vivo depende dessa identificação (ib.,
§72.9).

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