Doutrinas da Idade Antiga

AutorJônatas Luiz Moreira de Paula
Ocupação do AutorAdvogado. Mestre (UEL), Doutor (UFPR) e Pós-Doutor (Universidade de Coimbra). Professor Titular e Coordenador do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAR (Universidade Paranaense)
Páginas21-47

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1. Pré-História e Idade Antiga

O Estado sempre foi produto da humanidade; coube à sociedade politicamente organizada, concebida a partir das teses contratualistas, dar o aspecto moderno. Percebe-se desde a Pré-História, quando as tribos deixaram de ser nômades e passaram fixar-se definitivamente em determinados locais, que à matriarca, por ser o núcleo comum de todos os membros da aldeia, cumpria a função de dirimir disputas, reclamar injustiças, consultar, decidir e sancionar condutas.1Note-se a inserção da figura mítica da autoridade do chefe, ora visto como enviado dos deuses, ora reencarnação de chefes falecidos. O Estado, nesse momento da história, se fundava nesse misticismo, e as decisões eram tidas como justas, porque seriam extensões da vontade dos deuses e dos chefes antigos.

Porém, com a transformação da aldeia em cidade, outras transformações foram detectadas: a do caçador em guerreiro; a do feiticeiro em sacerdote; a do agricultor em camponês; a do artesão em mercador; a do clã em nobreza; a da matriarca em rei. A tarefa de presidir o processo e fazer a justiça competia especificadamente, num primeiro momento, ao rei, depois a determinadas pessoas, subordinadas a ele, que mais tarde seriam os juízes.

O Estado Antigo, em vista de duas características essenciais – unitarie-dade e religiosidade – é visto como “Estado Teocrático”. Assim ocorre porque a unitariedade impedia qualquer divisão interior, nem territorial, nem funcional; e a religiosidade se mostrava influente, a fim de fundamentar a autoridade dos governantes e as normas por eles expedidas.2Mas destaca-se que o Estado Antigo não era um estado nacional, uma vez que reunia povos de diferentes raças, alguns reduzidos à condição de

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escravos como espólio de guerra, outros na condição de povo conquistado. Caracterizava-se o Estado Antigo pela heterogeneidade racial.3O fundamento da atividade judicial e do processo se dava, por isso, em razão de ser uma extensão da vontade do Estado, em ter a absoluta certeza de que a norma do rei será aplicada. O respeito da decisão judicial, proferida no processo, vinha da concepção de que a norma aplicada originava-se da vontade dos deuses.

Observa-se, portanto, uma forte influência do miticismo religioso em torno do unitarismo estatal.

2. Grécia Antiga
2.1. Da Mitologia à Filosofia Grega

Porém, foi na Grécia Antiga que o Estado passou a ser pensado e a política expressou-se como idéias que o homem elabora e discute sobre os fenômenos da luta e exercício do poder, em nome da busca da justiça.

No âmbito da mitologia grega, explica Bittar, themis é uma deusa préolímpica, filha de Gaia e Urano e esposa de Zeus, atuando ao lado deste como símbolo da ordem e do poder organizativo. Segundo Bittar, os reis recebiam a justiça das mãos de Zeus, assim como o cetro do poder para o comando e orientação da sociedade. Porém, de posse desses fundamentos teológicos e místicos, os reis governaram despoticamente, circundados por privilégios e regalias, em detrimento do campesinato, adstrito a um modo simples e agreste de vida. Assim, a justiça distribuída por força do plano divino encontrou seus fundamentos nas lendas, no mito, na religião e na tradição consuetudinária, o que mostrava um flagrante golpe ao equilíbrio social, pois essa mesma justiça pendia em favor do poder dominante e opressor.4Essa opressão não se manifestou apenas no plano sócio-econômico, mas também no plano judicial. Pois, em vista da inexistência de leis escritas para os assuntos comuns, permitia-se toda espécie de abuso por parte dos magistrados que julgavam e se socorriam dos costumes, das tradições, da “vontade dos deuses”, da própria consciência e de seus interesses. Com isso, acentuava-se o número de reivindicações pela positivação de leis, como forma de contenção do arbítrio e da distribuição efetiva da justiça.

A evolução dos tempos, em vista das transformações jurídico-culturais da sociedade grega, o conceito de justiça deslocou-se da mitologia para

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alcançar o campo da criatividade intelectual dos poetas. Neste compasso, a justiça passa a ser vista como uma virtude, que representava um ideário literário de humanização da justiça. O poeta Hesíodo, que em sua obra acompanhava os movimentos sociais que se insurgia contra as injustiças, exaltava o trabalho, o esforço e os valores populares ligados ao modo campesino de vida. Assim, o povo, que antes era oprimido pelas autoridades que se fundava em Zeus, apegou-se a díke, como baluarte da realização material de um maior igualitarismo que permitisse a participação política, o poder de decisão e o acesso aos cargos públicos de direção. Com isso, o interesse social tornou-se valor a ser considerado na regência do Estado grego.5Conseqüentemente, concebeu-se a escrituração de leis para que se objetivasse a realização da “justiça popular”. Essa atividade legislativa iniciou-se no governo de Dracon, mas foi com Sólon que alcançou seu êxito. Diante do caos econômico e dos conflitos de classes, Sólon buscou alternativas de solução aos problemas, como a limitação ao direito de propriedade, a extinção da escravidão por dívidas, a reforma monetária com desvalorização da antiga moeda, a proibição do luxo gastronômico, a exportação de alimentos básicos e essenciais, à exceção do vinho e do azeite, a proibição de despesas improdutivas da nobreza, com festas, casamentos e funerais, o renascimento da Assembléia do Povo da qual participavam os cidadãos da Ática, que elegeriam funcionários do governo, e a instituição de um tribunal popular para decidir questões de direito comum, inclusive de direito civil.6Assim agindo, Sólon combateu a discórdia social e introduziu a igualdade formal. Aliando a força e a justiça, a Ordem e o Direito tornaram-se elementos primordiais na regência do governo, efetivando o homem ao Estado, erigindo uma responsabilidade cívica dos indivíduos na conjuntura político-social. No campo da especulação filosófica, observou-se um crescente trabalho dos filósofos em “humanizar” o conceito de justiça e levar suas conseqüências para a regência do governo. A justiça, deixando de ser vista sob o enfoque mítico, alça a posição de virtude cívica, o que elevou o indivíduo definitivamente à qualidade de cidadão, porque o mesmo passou a estar engajado de seus deveres, seja perante aos seus pares seja por subordinação aos governantes da cidade, seja por direito de participação e decisão política.7Tem-se aí a maior criação da Grécia Clássica: a lei, vista como princípio da organização política e social concebida como texto público, elaborado por

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um ou mais homens guiados pela reflexão, aceita por aqueles que serão a ela sujeitos, objeto de um respeito que não exclui modificações minuciosamente controladas.8Não coincidentemente, é nessa época da Grécia Antiga que tanto a Filosofia Geral como a Teoria Política surgem e se desenvolvem quase que simultaneamente, pois os grandes filósofos também fizeram incursões na política.9Nesse momento histórico, o Estado grego passa a ser visto sob o aspecto político e dos desenvolvimentos filosóficos que se deram. A maior característica do Estado grego é a concepção da polis, isto é, da cidade-Estado, destacando-se Atenas e Esparta. O ideal visado era a auto-suficiência, a autarquia, o que permitia preservar as instituições públicas.10No ideário político da Grécia antiga cinco nomes impõem-se: Péricles, Sócrates, Xenefonte, Platão e Aristóteles.

2.2. Péricles

O estadista Péricles notabilizou-se pela defesa da democracia e das instituições públicas atenienses. A democracia, que norteava a administração do Estado voltado para os interesses do povo e não de uma minoria, fundava-se em dois elementos básicos: a igualdade e a liberdade. A igualdade manifestava-se, primeiramente, no fato de as leis assegurarem a todos um tratamento idêntico no que diz respeito aos conflitos particulares; e no que toca à participação da vida pública, a igualdade se manifestava pela desconsideração da origem de classe e da condição social do cidadão, mas isto sim, pela consideração que se fazia ao mérito pessoal. Já a liberdade, ocorria de forma ampla, sem restrições e nem suspeitas aos cidadãos, também apresentava uma forte conotação na liberdade de opinião, uma vez que não havia doutrina oficial e nem verdade de Estado.11

2.3. Sócrates

A formação cultural de Sócrates se deu na época em que Péricles representava o que havia de melhor na Grécia Antiga.

Caracterizado pela honestidade e pelo temperamento crítico, Sócrates acreditava que devia servir à pátria conforme suas atitudes, vivendo justamente

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e formando cidadãos sábios, honestos e temperados, e não cidadãos egoístas, como outras escolas faziam. Esse modo de comportar gerou descontentamento em setores da sociedade, que resultou numa acusação de corrupção da mocidade e da negação dos deuses gregos, para introduzir outros. Mesmo ciente da injustiça da acusação e da condenação, Sócrates preferiu cumprir a sentença de morte ao invés de fugir, pois não pretenderia desobedecer às leis da pátria.12Platão posteriormente “fez sua defesa” na obra Apologia de Sócrates.13Sócrates não deixou escritos de seu pensamento filosófico. Couberam a Xenofonte e Platão reproduzirem o pensamento socrático. Compreendia Sócrates que o agir e o conhecer humano se baseavam em normas objetivas e transcendentes à experiência. Por isso concebeu a independência da autoridade e da tradição, a favor da reflexão livre e da convicção racional. O procedimento lógico para realizar o conhecimento verdadeiro, científico, conceitual, se dava pela indução, isto é, remontar do particular ao...

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