Due process of law e parecer prévio das Cortes de Contas

AutorProf. Luciano Ferraz
CargoProfessor de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da PUC/MG e de Direito Administrativo da Faculdade de Direito de Itaúna/MG
Páginas1-16

Professor de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da PUC/MG e de Direito Administrativo da Faculdade de Direito de Itaúna/MG. Mestre e Doutorando em Direito Administrativo pela UFMG. Assessor jurídico da vice-presidência do TCMG. Advogado em Minas Gerais.

Trabalho apresentado no curso de doutorado em direito administrativo pela UFMG, disciplina Direito Constitucional Comparado I, professor José Alfredo de Oliveira Baracho Junior, 1º Semestre de 2000.

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1. Introdução

A face democrática do Estado de Direito é ditada pela participação popular direta no processo de eleição de seus governantes e pelo respeito aos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos e da sociedade. De fato, o conceito material de Constituição, que se traduz no "...conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição de competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo", envolvendo a consagração de "direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais"1, deixa ver este perfil.

Infere-se que a Constituição é, por um lado, instrumento de criação dos órgãos constituídos e disciplinador do exercício legítimo do poder estatal; por outro, é certeza da garantia dos direitos fundamentais diante dos eventuais abusos cometidos pelos agentes que corporificam este poder. Daí as idéias (de Locke e de Montesquieu) sobre o controle do poder pelo poder.23 Page 2

A Constituição de 1988 dispõe sobre a organização fundamental do Estado brasileiro, subdividindo o exercício do poder estatal pelos órgãos que nela se inserem. Destacam-se os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, independentes e harmônicos entre si, nos termos do art. 2º. Sem embargo, o constituinte previu a existência de outros órgãos que embora situados, formalmente, no âmbito de um destes Poderes exercem de forma independente as competências colocadas a seu cargo. É o caso do Ministério Público e dos Tribunais de Contas.

Os Tribunais de Contas, que em nossa história jurídico-institucional acompanham, pari passu, a República, viram-se fortalecidos com o advento da Constituição de 1988 - a necessidade de controle efetivo dos gastos públicos foi, no particular, o ponto determinante. Os arts. 70 a 75 do Estatuto Fundamental ditam-lhes os contornos: composição; forma de escolha, prerrogativas e deveres de seus membros; competências. Numa abordagem genérica seu papel resume-se no prestar auxílio aos órgãos representativos do Poder Legislativo na atividade de controle e fiscalização contábil, financeira, orçamentária e patrimonial do Estado-Administração.4

Dentre as competências constitucionalmente atribuídas aos Tribunais de Contas, interessa-nos, neste estudo, a do inc. I do art. 71 que consiste na emissão de parecer prévio sobre as contas globais do Chefe do executivo (contas do governo), as quais, posteriormente, são submetidas ao julgamento perante as Casas Legislativas.5

O enfoque consistirá, tendo como norte o conceito de Constituição material, em saber da necessidade do respeito, por parte dos Tribunais de Contas, às garantias fundamentais do devido processo legal, do contraditório e Page 3 da ampla defesa (art. 5º, LIV e LV da CR/88), por ocasião do exercício da aludida competência.

2. Desenvolvimento
2.1. Natureza jurídica do processo de julgamento das contas globais do chefe do executivo (contas do governo)

Em regra, o termo processo encontra-se associado exclusivamente ao exercício da função jurisdicional do Estado, regulando-se, sobremodo, pelo direito processual civil e criminal. Resquício da visão privatística do processo que predominou até meados do século XIX (ocasião em que o Direito Administrativo ensaiava seus primeiros passos), esta visão retilínea de que o processo vinculava-se tão-só ao exercício da função jurisdicional do Estado, encontra-se, hodiernamente, superada.6 Conforme anota Odete Medauar:

Neste século, a partir do final dos anos 20, entre os administrativistas, e dos anos 40, entre os processualistas, começa a despontar o entendimento no sentido da aceitação de uma processualidade ligada ao exercício dos três principais poderes estatais.

Às manifestações episódicas deste período seguiu-se, nas décadas de 50 e 60, um aumento expressivo dos estudos a respeito, culminando, nos anos 70 e 80, numa convergência de processualistas e administrativistas em torno da afirmação do esquema processual relativo aos poderes estatais, sobretudo.

"Essa postura denota evolução nas concepções de processualistas e administrativistas, tendo como ponto referencial comum os dados do contexto sócio-político das últimas décadas deste século e a busca de novas chaves metodológicas, adequadas a esse contexto e ao melhor exercício dos poderes estatais que o Direito processual e o Direito administrativo disciplinam."7

Entre os processualistas, o pioneirismo na idéia da existência de um núcleo processual comum ao exercício das funções estatais é atribuída a Carnellutti (Sistema del diritto processuale civile), entre os administrativistas este papel é reputado ao jurista da escola de Viena Adolf Merkl (Teoria Geral do Direito Administrativo). Afirmou o último: Page 4

"... em sentido rigoroso e técnico, se fala em processo jurídico quando o caminho a um ato estatal não está na livre escolha do órgão competente para o ato, mas está previsto juridicamente... O direito processual administrativo é um caso particular do direito processual... e o processo administrativo é um caso particular do processo jurídico em geral."8

A evolução da concepção do processo como elemento inerente ao exercício legítimo do poder do Estado ganha impulso definitivo com a contribuição do italiano Feliciano Benvenuti (Funzione amministrativa, procedimento, processo) que sustentou a correta idéia de que no exercício das três funções estatais (Legislação, Administração e Jurisdição) há processualidade. O processo é a manifestação sensível da função que leva à edição de um ato final (provimento). Isto eqüivale a dizer que nem sempre os atos estatais se apresentam ao mundo jurídico imediatamente, pelo contrário, muita vez é mister que um caminho, definido juridicamente, seja percorrido até a emanação do ato e este caminho caracteriza o processo, ou para utilizar nomenclatura adequada - o procedimento.

Em outras palavras:

"O Estado poderá, mediante qualquer de seus órgãos, hierarquicamente dispostos ou não, criados pela Constituição ou por normas inferiores, manifestar sua vontade (potestas), que sempre assumirá a natureza de legislação, administração e jurisdição; vale dizer, virá ao mundo jurídico como lei, ato administrativo (em sentido amplo) ou sentença." 9

Acrescente-se, portanto, que para que a função do Estado venha ao mundo na forma de ato jurídico, a regra é que se percorra um iter, que se denomina procedimento. Assim, ao exercício da função legislativa corresponde o procedimento (ou processo) legislativo; ao exercício da função jurisdicional corresponde o procedimento (ou processo) jurisdicional; e, finalmente, ao exercício da função administrativa corresponde o procedimento (ou processo) administrativo.

Compartilhamos da doutrina de Fazzalari, de que o procedimento é gênero e processo é espécie do gênero procedimento. Afirma o mestre:

"se, poi, al procedimento di formazione del provvedimento, alle attività preparatorie attraverso le quali si verificano i presupposti del provvedimento stesso, sono chiamati a participare, in una o più fasi, anche gli intessati, in contradditorio, cogliamo l'essenza del "processo": che è, appunto, un procedimento al quale, oltre all'autore dell'atto finale, partecipano, in contradditorio fra loro, gl'interresati, cioè i destinatari degli effetti di tale atto." Page 5

E mais à frente continua:

"Se, poi, il procedimento à regolato in modo che vi partecipino anche coloro nella cui sfera giuridica l'atto finale è destinato a svolgere effeti (talché l'autore di esso debba tener conto della loro attività), e se tale partecipazione è congegnata in modo che i contrapposti interrasi (quelli che aspirano alla emanazione dell'atto finale - interessati in senso stretto - e quelli che vogliono evitarla - contro-interessati) siano sul piano di simmetrica parità; allora il procedimento comprende il contradditorio, si fa più articolato e complesso, e dal genus procedimento è consentito enucleare la species processo.10

O procedimento é toda e qualquer sucessão de atos que se compreende entre o poder do Estado, abstratamente considerado, e sua forma de exteriorização que é o seu ato final (lei, ato administrativo ou sentença), conquanto se afigure processo (em espécie) tão-somente quando elemento essencial se faz presente ao longo do procedimento, qual seja a colaboração dos interessados, sob o prisma do contraditório.

E isto tem de ver com a participação dos interessados no iter formador do ato final (provimento), vale dizer, que os próprios destinatários possam e devam participar da concretização do poder do Estado no ato tradutor de sua manifestação. O contraditório se caracteriza pela estrutura dialética do procedimento - a alternância de posições ativas e passivas entre o órgão estatal do qual emanará o ato e o sujeito (ou os sujeitos) destinatário deste ato: o primeiro querendo respostas, justificativas, provas; o segundo apresentandoas e aguardando o pronunciamento daquele.

Nessa linha, sustenta Rangel Dinamarco:

"Nem todo procedimento é processo, mesmo tratando-se de procedimento estatal e ainda que de algum modo possa envolver interesses de pessoas. O critério para a conceituação...

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