Empregadas domésticas, cuidadoras e afazeres domésticos: o viés de gênero da pandemia de Covid19

AutorDébora Thomé, Hildete Pereira de Melo
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2021.78094
153153 – 177
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Empregadas domésticas, cuidadoras
e afazeres domésticos – o viés de
gênero da pandemia de Covid-19
Débora Thomé
Hildete Pereira de Melo
Resumo
Este texto, escrito em 2020, em meio à pandemia de Covid-19, parte das tensões que se acumu-
laram na sociedade mundial, e particularmente da vivida pela população brasileira, para analisar
como os afazeres domésticos e cuidados – remunerados e não remunerados – estão no centro das
questões que envolvem a crise sanitária e como a pandemia potencializou as desigualdades de
gênero e raça. Tanto no plano individual, quanto no coletivo, cuidar das pessoas é a raiz do que
dene as atribuições e tarefas do trabalho doméstico remunerado e do cuidado. Em meio ao con-
texto extremo, analisamos, para além da demanda desse serviço, a sua oferta, ou seja, quem são as
mulheres que dependem do salário propiciado pelo trabalho doméstico, com presença frequente
ao longo de toda história do Brasil. Assim, o artigo também apresenta o perl sociodemográco e
econômico dessas trabalhadoras e o impacto da crise econômica e sanitária na ocupação em um
provável cenário de lenta recuperação da economia.
Palavras-chave: Trabalhadoras domésticas. Cuidadoras. Divisão sexual do trabalho. Pandemia.
1 Introdução
Este texto, escrito em outubro de 2020, tem como objetivo discutir
uma das muitas tensões, antes pouco visíveis – ou mesmo, invisíveis – que
a pandemia de Covid-19 trouxe à tona. Iniciando pelo contexto, a crise de
saúde mundial possibilitou rasgar o véu que cobria o crescimento da pau-
perização da população mundial, decorrente, em grande monta, da estraté-
gia econômica neoliberal, que, desde o m da URSS em 1991, espalhou-se
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Pereira de Melo
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por todos os continentes. Tal momento marcou um paulatino desmonte
do Estado de Bem-Estar e de suas políticas sociais erigidas no pós-segunda
guerra mundial. Nos países de maior renda, esse processo vem acontecen-
do há décadas, e se tornou mais evidente em 2020 (CARVALHO, 2020).
No caso brasileiro, a adoção de políticas de bem-estar social voltadas
às populações de maior vulnerabilidade foi possível graças à Constituição
Federal de 1988, que garantia educação e saúde para toda a população,
ampliando os direitos sociais da Consolidação da Lei do Trabalho (CLT)
de 1943. A execução dessas políticas foi mais presente, sobretudo, a partir
da década de 2000 (THOMÉ, 2013); porém, desde 2016, com o impea-
chment da presidenta de Dilma Rousse, elas vêm sofrendo desmontes em
várias frentes. Com o argumento de que o texto Constitucional não cabia
no orçamento federal, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 95/2016,
a qual estabeleceu um teto declinante de gastos públicos federais, com
validade de 20 anos, o qual tem imposto uma redução permanente dos
gastos sociais de forma a cumprir o teto (DWECK, 2019). Justamente
em meio a este cenário de políticas de austeridade e cortes nos programas
sociais, combinados com baixo crescimento (1,1% ao ano) e desemprego,
explodiu a pandemia de Covid-19.
Desenvolver uma reexão sobre o trabalho doméstico remunerado e
não remunerado em plena crise, vivendo uma política sanitária, ainda que
atabalhoada, de isolamento social, tem sido um grande desao. Isso ocorre
porque enfrentar a pandemia – tanto no que diz respeito ao plano indivi-
dual, quanto ao coletivo – é cuidar das pessoas, e esse tema é a raiz do que
dene boa parte da ocupação, das atribuições e das tarefas do trabalho do-
méstico remunerado e não remunerado. Essa escrita contempla não apenas
as angústias relativas ao medo da contaminação; ela perpassa também os
problemas que ambas as autoras, amigas, vizinhas e familiares estão viven-
ciando neste contexto. Muitas delas são idosas, portanto, precisam de cui-
dadoras; algumas têm deciências; outras precisam trabalhar enquanto as
crianças permanecem com suas demandas e isoladas dentro de casa; outras
dependem do salário que era recebido em uma função que pressupunha
o contato, agora arriscado. Com políticas sociais insucientes, que não
atendem às populações nas suas diferentes vulnerabilidades, os indivíduos

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