Epistemologia jurídica

AutorHugo de Brito Machado Segundo
Páginas57-103
CAPÍTULO 3
EPISTEMOLOGIA JURÍDICA
3.1 O Direito enquanto objeto da cognição e as várias formas de estu-
dá-lo. 3.2 Conhecimento e normas jurídicas. 3.2.1 Aspectos gerais às
várias ordens jurídicas. 3.2.2 Estudo de um ordenamento especíco
ou de parte dele. 3.2.2.1 Critérios para a aferição da correção do que se
diz sobre as normas e a competência do Judiciário para dar a “palavra
nal” sobre litígios. 3.2.3 Componente normativo, simplicação e
complexidade. 3.3 Conhecimento e valores no Direito. 3.4 Conhe-
cimento do Direito e realidade factual. 3.4.1 Conhecimento do fato
necessário à correta interpretação da norma. 3.4.2 Possibilidade de
múltiplos estudos empíricos no âmbito do Direito. 3.4.2.1 Ameaça de
punição e fundamentos de uma ordem jurídica. 3.4.2.2 Formação de
convicções e importância do pluralismo. 3.4.2.3 Emoções, economia
comportamental e decisões judiciais. 3.4.3 Conhecimento do fato
necessário à incidência da norma.
As premissas traçadas nos dois capítulos anteriores permitirão,
neste capítulo, que se examinem as possibilidades de conhecimento
do Direito, bem como as contribuições que a Epistemologia pode
oferecer à compreensão do fenômeno jurídico em suas múltiplas
dimensões.
3.1 O DIREITO ENQUANTO OBJETO DA COGNIÇÃO E AS
VÁRIAS FORMAS DE ESTUDÁ-LO
As divergências em torno do estudo do Direito começam pela
própria identif‌icação do objeto ou, por outras palavras, da parcela
da realidade a ser designada pela palavra “Direito”, que, como se
sabe, tem diversos signif‌icados. Mesmo se se abstraírem signif‌icados
ligados a realidades correlatas (v.g. João é um menino direito, ou
Maria dirigia pelo lado direito da rua), concentrando-se no chama-
do “Direito Positivo”, surgem dif‌iculdades na identif‌icação do que
se está a designar: um conjunto de normas? Decisões judiciais? A
DIREITO E SUA CIÊNCIA • Hugo de Brito MacHado Segundo
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forma como as pessoas de fato se conduzem e se comportam, inde-
pendentemente do que dispõem as normas of‌icialmente editadas
pelo Estado?
Mais importante do que a disputa sobre qual dessas realidades
merece o rótulo de “Direito” parece ser a constatação da existência
de todas elas, a verif‌icação de suas características e das relações que
mutuamente estabelecem entre si; e a percepção de que podem ser
objeto de estudo, tanto científ‌ico quanto f‌ilosóf‌ico, tendo em vista
que o que caracteriza um estudo como científ‌ico ou f‌ilosóf‌ico não
é o seu objeto, mas a atitude adotada pelo pesquisador diante desse
mesmo objeto (ver item 2.4). Entretanto, é importante que se tenha
consciência de que a palavra “Direito” pode ser usada para designar
mencionadas realidades – diferentes, mas relacionadas – para se
evitarem divergências, que a rigor são falsas ou apenas aparentes,
visto que decorrem da circunstância de que as pessoas que divergem
cuidaram de coisas diversas rotuladas com o mesmo nome.1
Existe, em toda sociedade humana, um sistema de normas que
disciplina a conduta dos que a integram, compartindo sua liberdade
de modo a tornar viável a vida em comunidade. Esse sistema pode ser
verif‌icado, de forma muito rudimentar, em grupos de animais, como
explicado anteriormente (item 1.4); e, mesmo em comunidades hu-
manas, em alguns casos, pode confundir-se com sistemas de normas
morais e religiosas, mas, nas sociedades contemporâneas, costuma
diferenciar-se dos demais sistemas, com os quais se relaciona, pela
circunstância de regular sua própria constituição.
Por outras palavras, o traço característico de um sistema jurídi-
co é o de que ele é dotado de normas secundárias, assim entendidas
aquelas que dispõem a respeito do funcionamento do próprio sistema,
1. De forma caricaturesca, duas pessoas que discutem se o Direito é um conjunto de nor-
mas of‌icialmente editado pelo Estado, ou se consiste na verdade nas “decisões que as
aplicam”, envolvem-se em polêmica semelhante àquelas duas que divergem sobre se o
“churrasco” é um conjunto de pedaços de carne (e linguiça, costela etc.) devidamente
assados, ou se é “na verdade” o ato ou a ação de assá-los, ou, ainda, o encontro social
no âmbito do qual isso ocorre e a carne é consumida. Af‌inal, as pessoas tanto dizem que
“comeram o churrasco” como que “conheceram uma pessoa interessante no churrasco”.
A divergência está muito mais em saber qual a melhor utilização da palavra, do que na
identif‌icação das duas ou mais realidades às quais ela pode dizer respeito.
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CAPíTUlO 3 • EPISTEmOlOGIA JURíDICA
determinando como outras normas devem ser criadas, interpretadas,
aplicadas ou mesmo excluídas da ordem jurídica.2
As normas jurídicas, como é sabido, são feitas à luz da valora-
ção de fatos. A conduta humana é objeto de valoração, sendo assim
considerada desejável, reprovável ou necessária, dando origem à
edição de normas destinadas a torná-la facultada, proibida ou obri-
gatória. Não importa se essas normas são editadas por um soberano,
por um parlamento, ou são fruto do costume: em qualquer caso elas
decorrem de fatos aos quais se atribuíram valores (sendo, portanto,
considerados bons ou ruins, dignos de serem repetidos ou evita-
dos). O fenômeno jurídico, portanto, pode ser examinado em seu
componente normativo, mas também se pode dar maior atenção aos
seus aspectos factuais e axiológicos, permitindo assim abordagens
sociológicas, históricas, psicológicas ou f‌ilosóf‌icas da mesma reali-
dade multidimensional. Pode-se ainda examinar sua História, sua
relação com outros sistemas sociais, sua estrutura lógico-formal, ou o
conteúdo específ‌ico de segmentos dele (Penal, Civil, Processual etc.).
Para que se compreendam as diversas abordagens possíveis
em torno do Direito enquanto fenômeno natural e cultural huma-
no, talvez seja de alguma ajuda estabelecer paralelo com a música,
também uma realidade institucional, criada pelo homem mas de
algum modo observável, de maneira rudimentar, em outros animais,
sujeita a variações culturais mas paradoxalmente presente em todas
as culturas a partir de elementos comuns a todas elas.
É possível estudar a História da Música. Seu surgimento nas pri-
meiras comunidades humanas, suas manifestações na Antiguidade,
na Idade Média, as inf‌luências, as transformações e as ramif‌icações
havidas até os dias de hoje. Mas é igualmente viável dedicar-se à
análise da Teoria Musical, das notas e da forma de expressá-las em
uma partitura, sob um ponto de vista meramente formal. Por igual,
faz-se possível o exame das várias manifestações musicais existentes
na contemporaneidade, das mais eruditas às mais populares, ou da
forma como a música pode servir como instrumento de inf‌luência
de uma cultura sobre outras, e assim por diante.
2. Herbert L. A. Hart. O conceito de direito. Trad. A. Ribeiro Mendes. 3. ed. Lisboa, Calouste
Gulbenkian, 2001, p. 101 e ss.

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