Equidade e jurisprudência

AutorCarlos Aurélio Mota De Souza
Páginas173-192
III
1. Da indispensabilidade do Judiciário
Assim como um alfaiate adapta um molde a uma pessoa, ta-
lhando e alinhavando o tecido, também o juiz recorta a norma a
aplicar, pois toda lei, sendo genérica, sempre é maior ou menor que
o caso singular1. Para tomar a medida exata do corpo, o artesão usa
ta maleável, não elástica, qual a régua de Lesbos da equidade aris-
totélica, de uso judicial para “medir” o caso concreto. Recortando o
pano que sobeja, ou completando o material que falta, o costureiro
adapta o modelo ao indivíduo, e assim a veste será a justa medida.
Roupa ajustada, então, resulta da aplicação, num primeiro momen-
to, de um molde ou modelo para o corte; mas, depois, o artesão o re-
talha, tirando excessos e amoldando à pessoa (indivíduo único, que
não se repete em suas características físicas, espirituais, e em suas
circunstâncias de tempo, modo e lugar ou conjuntura). Inspira-se
o artista da costura num modelo (gurino, guras abstratas), para
vestir uma pessoa real, viva, individuada. A roupa, como a decisão,
é um produto equitativo, em duplo sentido: por ser a solução mais
justa encontrada ao dar a cada um o devido na sua justa medida.
Tal como o mestre da costura, o juiz aplica a regra ao caso concre-
to, escolhendo, de início, um modelo legal (lei abstrata e genérica),
rejeitando excessos, suprindo lacunas e obscuridades com material
jurídico (analogia, costumes, princípios gerais, doutrina, jurispru-
dência), adaptando-o à espécie. Opera a subsunção do fato típico
(fattispecie, Tatbestand, state of facts) à previsão legal.
1 Giuseppe MAGGIORE. Equità..., ibid.
 
De mesmo proceder é o do juiz valer-se do direito positivo como
de modelos de condutas acatadas por uma comunidade; diante do caso
individual elege uma norma especíca; subsume o fato ao gurino (en-
quadramento legal); toma as medidas do conito (provas, circunstân-
cias, evidências, máximas de experiência, fatos notórios, cções, presun-
ções, aparências). Exclui o que não cabe (afasta os excessos da norma);
cobre os vazios, suprindo-os com matéria jurídica nova (buscando os
mores da época, objetivamente determinados). Ao m e ao cabo, pro-
fere decisão que, adotada em denitivo (trânsita em julgado), valerá
sempre como lex specialis, de mesmo valor que a norma legislada2.
Anal, o que são casos concretos? São lides, pretensões huma-
nas, controvérsias (homens ou interesses que serão medidos, sopesa-
dos, valorados). A m de resolvê-los conforme a lei (matéria prima
genérica) existe o juiz (modelador), que adotará a mais justa solução
(como o vestuário sob medida).
Assim, a lei geral criada pelo legislador (modelo jurídico legisla-
tivo) e a lei particular recriada pelo juiz (modelo jurídico judicial ou
jurisprudencial), diferem apenas pelas causas formal e eciente, por-
quanto a matéria (causa material ou conteúdo normativo) é a mes-
ma, como mesma é a nalidade (causa nal), de resolver os conitos,
restabelecer a paz social, rearmar a autoridade do ordenamento ju-
rídico. Em síntese, realizar a justiça social e o bem comum.
Entretanto, melhor que a lei geral é a lei particular. Esta pode
surgir espontaneamente entre partes, enquanto discutem direitos
disponíveis (como na incidência em contratos etc.), mas, nos con-
itos versando direitos indisponíveis, estes só se resolvem com a
intervenção do Judiciário, que atua para apreciação da essência, da
nalidade da lei e sua melhor adequação ao caso particular. Daí a
indispensabilidade da jurisdição na apreciação das leis, através de
constante, permanente e reiterativa interpretação das normas jurídi-
cas, em todos os eventos que lhe chegam a análise. É a expressão da
garantia constitucional de inafastabilidade da apreciação pelo poder
judiciário de qualquer lesão ou ameaça de direito3.
2 Direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada estão no mesmo nível de
ecácia da lei. C. F., art 5º, inc. XXXVI.

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