A escola e a rua: interação possível?

AutorSolange Cristina da Silva
Páginas68-87

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Este artigo* traz reflexões acerca da relação do “mundo da rua” com o “mundo da escola”, fomentadas na pesquisa de mestrado intitulada A rua da escola: estudos de significados construídos por adolescentes abrigados (SILVA, 1999), que busca compreender que significados os adolescentes de 12 a 18 anos abrigados e com passagem pela rua atribuem à escola. Essa pesquisa de caráter qualitativo encontrou no estudo de caso elementos para sua realização, possibilitando que esses adolescentes tivessem voz e vez e falassem sobre suas vivências na família, na rua, na Casa Lar 2 e na escola, de forma a trazer dados significativos, que mostrassem a contribuição que a convivência nesses espaços trouxe com relação a sua trajetória escolar e elucidar os limites e as contradições do espaço escolar, permitindo, assim, repensar alguns aspectos da educação a que os alunos são submetidos. Entrevistas nortearam a pesquisa e vários autores que investigam as principais características das crianças e dos adolescentes de rua, como Santos (2004), Neiva-Silva (2003) e Lima (1997), contribuíram, por meio de seus trabalhos, para ampliar esta discussão.

Na primeira parte deste artigo, apresentam-se o “mundo da rua” e seus diversos protagonistas. Na segunda parte, mostra-se como a estrutura e o funcionamento da instituição escolar colaboram, muitas vezes,Page 69para agravar a exclusão social desses adolescentes. Nas considerações finais, firma-se a necessidade de alterar esses mecanismos escolares que contribuem para a exclusão das crianças e dos adolescentes, como forma de garantir seu direito à educação.

O “mundo da rua”

Dizer que a rua é: “qualquer logradouro público ou outro lugar que não seja casa de residência, local de trabalho etc.” (FERREIRA, 1988, p.1261) basta para identificá-la, quando isso se refere à maioria das pessoas que a têm como espaço para compras e lazer, dentre outras coisas. Entretanto, para pessoas que não têm casa para morar ou vivem do trabalho informal e fazem da rua um espaço de trabalho e moradia, o significado explicitado acima não reflete o que ela representa em seu fazer cotidiano. Para seus moradores, a rua é o espaço que lhes cabe, nela, inventam e reinventam formas de sobreviver, construindo assim outros significados e outro modo de ver o mundo. Dessa forma, sobreviver na rua implica construir regras e conceitos diferentes dos estabelecidos e aceitos normalmente na sociedade. Construir outra forma de ver o mundo implica se relacionar de outra maneira com as coisas, com o espaço, com o tempo. Assim, a rua, apesar de ser constitutiva da cidade, constitui um mundo à parte, “com um jeito próprio de viver e ser” (GUSMÃO e MARQUES, 1996, p.03).

Para quem mora na rua, o espaço que para a maioria é considerado público adquire sentido privado: a casa de alguns, figurativamente, a casa retratada na música A casa de Vinícius de Moraes: “Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada [...]”. Do ponto de vista de Da Matta (1991, p.61), “a rua pode ter locais ocupados permanentemente por categorias sociais que ali ‘vivem’ como ‘se estivessem em casa’”. Assim, o público e o privado entrecruzam-se, misturam-se, e desses espaços apropriam-se momentaneamente. Como é o caso dos sujeitos que moram na rua e nela tomam banho no chafariz, namoram (incluindo aqui atos sexuais), entre outras coisas, fazendo assim, desse espaço que é público – a rua -, um espaço privado, na medida em que têm ações que geralmente são permitidas somente em lugares reservados .

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Diferentemente de o que se costuma vivenciar no cotidiano, no qual se identificam pessoas pelo nome que, acompanhado de um número (CIC, RG etc.), dá uma identidade civil, reivindicada a todo momento nos estabelecimentos comerciais, na hora de votar etc., os moradores da rua vivem no anonimato. Pode-se dizer que quem mora na rua não tem endereço certo, vive um pouco aqui, um pouco acolá. Essa transitoriedade está nas falas dos adolescentes entrevistados: “Eu não tinha lugar, por isso que eu conheço todo mundo [...]. Eu dormia em qualquer lugar.
[...]” (Marcelo, nov./97, apud SILVA, 1999). A rua tem dimensões abrangentes que permitem movimentação ampla, e cujos moradores passam a ocupar espaços diversos em determinados momentos, vivendo as coisas de forma transitória, tornando-se, assim, nômades e anônimos. Esses anonimato e transitoriedade proporcionados pela vivência na rua possibilitam que as pessoas se soltem mais, pratiquem ações que não realizariam num outro espaço. Tais ações servem também como estratégia de defesa ou forma de proteção, seja da polícia, das gangues ou de quem quer que as ameace.

Quem vive na rua precisa de agilidade, flexibilidade e muito movimento corporal para sustentá-la. Daí precisar mudar sempre de espaço e procurar outro território. A rua constitui-se em transitoriedade permanente, dada a insegurança total. Não é possível prever o que vai acontecer na próxima hora, no próximo dia (GRACIANI, 1997, p.131).

A rua faz-se neste movimento constante dos sujeitos: ir e vir, estar e passar. Os que vivem na rua não conseguem fugir da trama das relações em que ela os envolve e, nesse fazer cotidiano, permeados por essas relações, são necessários muita agilidade e muito movimento. Assim, tanto a espacialidade como a temporalidade são vividas por essas pessoas, que delas se apropriam, diferentemente da formalização típica da sociedade em se que vive.

Num contexto social capitalista, em que a produção é fundamental, o tempo faz-se importante, ou seja, é preciso economizar tempo e, conseqüentemente, produzir mais. A lógica capitalista faz com que essa corrida em função do tempo torne-se parte do dia-a-dia, o que constrói um processo de naturalização da demarcação do tempo.

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Apesar disso, dessa naturalização do tempo padronizado, geralmente, o grupo da rua não se apropria, pois ele vive de acordo com lógica diferente daquela dominante na sociedade. Sendo assim, pode-se dizer que o tempo, para as crianças e os adolescentes que vivem na rua, tem significado específico: cada minuto é único, como se fosse uma conquista constante. Não há demarcação de tempo socialmente sancionada e utilizada – hora de... – que representa o momento específico para realizar tal ação: hora do almoço, hora da janta, hora de dormir etc. Encontram-se, sim, momentos determinados pelas necessidades orgânicas, fisiológicas e pelos desejos. Há o momento em que se está com fome e se vai “batalhar um rango” 3 , o momento em que se está com sono e se deita numa pedra, num banco ou qualquer outro lugar e se dorme, e assim por diante.

A inconstância, provisoriedade e as rudezas da vida na rua leva quem a habita a viver o momento presente, “o agora”, até porque “o depois” pode não existir. A rua é comumente considerada um espaço não-institucionalizado e, portanto, para viver nela, o controle do tempo não é necessário. O tempo padronizado usa-se somente quando, na relação estabelecida com pessoas fora do grupo social da rua, é preciso voltar-se para essa questão. Mesmo assim, não é fácil marcar com adolescentes de rua encontros e compromissos para dias posteriores. Viver na rua, então, significa aprender essa outra lógica construída no dia-a-dia da rua, visto que os conhecimentos nela construídos diferem dos conhecimentos construídos em outros espaços, como, por exemplo, a escola.

No entanto, Neiva-Silva (2003, p.16) alerta para o fato de que, mesmo havendo “preocupação inicial com resoluções de questões como ‘o que comer’, ‘o que vestir’, ‘onde dormir’, [isso] não implica a exclusão de um pensar sobre o amanhã, em seus diferentes aspectos”. Nessa perspectiva, apesar de os adolescentes em situação de rua estarem presos a soluções imediatas de sobrevivência e segurança, eles têm expectativas futuras.

Os adolescentes pesquisados concebem a rua como espaço de maior “liberdade”, no sentido de poder ir e voltar a qualquer hora, a qualquer lugar, e também como espaço onde se estabelecem relações de aprendizagem, que podem possibilitar saberes específicos necessários a sua sobrevivência, diferentes formas de se relacionar com as coisas, com as pessoas, com o mundo. Tomar banho no chafariz, drogar-se, pedir, pegar ônibus e tantos outros fazeres na rua implicam aprender.

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O aprender da rua possibilita poderes, saberes e sobrevivência. Visando a sua sobrevivência, as pessoas que moram ou se inserem na rua construíram um “mundo à parte”, um “mundo marginal”, contudo, não se pode deixar de considerar, ao conceber a sociedade em sua totalidade, que esse mundo interage com tantos outros mundos que possam existir, de forma a constituírem uma unidade social. Nessa perspectiva, considera-se que a existência ou não dessa marginalidade acontece em relação a alguma coisa, ou seja, deve-se relativizar o sentido de marginalidade, considerando-se que há uma relação dialética entre os diversos grupos ou “mundos” e que nessas relações vão-se construindo modos peculiares de integração, exclusão, participação.

A exclusão existe, mas é relativa. O sistema capitalista tem em sua lógica uma conduta de exclusão, contudo, a parte considerada marginal estabelece relações de diferentes formas com esse sistema, tornando-se parte dele. Esse fazer excludente tem como elemento intrínseco a violência, que marca física e psicologicamente os sujeitos envolvidos e parece ser constante nos vários espaços sociais existentes entre eles a rua.

Quando, andando pelas ruas do centro da cidade, vêem-se crianças e adolescentes pedindo esmolas, dormindo em qualquer lugar, cheirando cola, constata-se a violência explícita na forma desumana de vida a que são submetidos esses adolescentes, como se pode observar na fala Guilherme (nov./97, apud SILVA, 1999): “A gente dormia em qualquer lugar... na rua. Ali no Centro tem uma pedra direto no sol, ali no comecinho da Beira-mar”.

A violência...

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