A escuta selvagem

AutorRaul Antelo
Páginas3-25
|boletim de pesquisa nelic, florianópolis, v. 17, n. 27, p. 3-25, 2017|
doi:10.5007/1984-784X.2017v17n27p3 3
A ESCUTA SELVAGEM
Raul Antelo
UFSC
RESUMO: Estamos tão pendentes do que se escreve que perdemos o que se diz. O aturdito é aquilo
que se diz e permanece esquecido atrás do que foi dito naquilo que se ouve. Os leitores são sempre
aturditos e atordoados em relação ao universal e à existência da linguagem.
PALAVRAS-CHAVE: Nacional. Universal. Modernidade.
WILD HEARING
ABSTRACT: We are so hung-up on what is written that we miss out on its saying. Laytour (Latetour)
is that one might be saying and remains forgotten behind what is said in what is heard. Readers are
always the étourdis, the blunderers with regard to the universal and the existence of a saying.
KEYWORDS: National. Universal. Modernity.
Raul Antelo é professor titular de Literatura Brasileira no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas
e professor do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina.
Pesquisador CNPq.
|boletim de pesquisa nelic, florianópolis, v. 17, n. 27, p. 3-25, 2017|
doi:10.5007/1984-784X.2017v17n27p3 4
A ESCUTA SELVAGEM
Raul Antelo
1.    
No ano passado, completou-se o sesquicentenário de uma obra notável, O
Selvagem de José Vieira Couto de Magalhães. Mineiro de Diamantina, Couto de
Magalhães estudou matemática na Academia Militar do Rio de Janeiro e, mais
tarde, artilharia de campanha, em Londres. Foi bacharel em Direito e a seguir
doutor pelo Largo São Francisco. Exerceu os cargos de conselheiro de Estado;
deputado por Goiás e Mato Grosso; presidente das Províncias de Goiás (1861-
1864), Pará (1865-1866), Mato Grosso (1866-1868) e São Paulo (1889), lu-
tou na Guerra do Paraguai e foi diretor do Banco de São Paulo. Seu nome, que
pervive ajudando a preservar as escrituras rupestres da ilha do Campeche, de-
signa, de fato, um homem ilustrado do Império, alguém que falava inglês, fran-
cês, alemão, italiano e tupi, além de ser um estudioso das ciências, a ponto de
ter em sua chácara, às margens do Tietê, o primeiro observatório astronômico
de São Paulo. Um emblema do Esclarecimento século XIX, que propôs, entre-
tanto, um lugar peculiar para o índio, na modernização da sociedade brasileira.
Como sabemos, mesmo presente em diversas representações simbólicas
do Império, o índio nunca foi abordado como agente social e cultural, vista a
concepção tão romântica, quanto paternalista e autoritária, focada exclusiva-
mente em um eu ideal, com que ele era abordado. Couto de Magalhães apostou,
então, em condição singular, pela capacidade dos índios participarem, como
elementos ativos, no processo de formação da moderna sociedade brasileira,
não apenas na vigilância das fronteiras, mas também na produção de rique-
zas econômicas. Era imprescindível, portanto, integrá-los à sociedade nacional,
torná-los operantes, operários e, para tanto, Couto de Magalhães contava com
duas ferramentas que estipulava no subtítulo da sua obra, as “colônias milita-
res” e o “intérprete militar”, cuja função se explicita logo na folha de rosto da
primeira edição.
Conseguir que o selvagem entenda o portuguez, o que equivale a incorporá-lo à
civilisação, e o que é possível com um corpo de interpetres formado das praças
do exército e armada que fallem ambas as línguas, e que se dissiminarião pelas
colônias militares, equivaleria à: 1º Conquistar duas terças partes do nosso terri-

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