Entre 'Espírito de corpo' e unidade do direito: definições de excelência e recrutamento social de duas faculdades tradicionais de São Paulo

AutorJéssica Ronconi Fernandes
CargoDoutoranda no Centre Européen de Sociologie et de Science Politique (CESSP-EHESS) e no Programa de Pós--Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo. na área de Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP.
Páginas289-325
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2022.e76748
289289 – 325
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Entre “espírito de corpo” e unidade
do direito: denições de excelência
e recrutamento social em duas
faculdades tradicionais de São Paulo1
Jéssica Ronconi2
Resumo
O presente artigo discute as denições de excelência jurídica e o recrutamento social das facul-
dades de direito da Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Em um
primeiro momento, investigamos os respectivos ideais de formação jurídica presentes nos progra-
mas acadêmicos, sites e TCCs defendidos pelos estudantes de direito. Em seguida, analisamos
as propriedades sociais e as aspirações prossionais dos futuros bacharéis por meio da aplicação
de questionários. Por m, a análise dos Currículos Lattes dos docentes e a realização de algumas
entrevistas nos permitiram conhecer a trajetória acadêmica dos professores de direito e suas visões
sobre a formação jurídica. O estudo desse universo acadêmico aponta para a coexistência de uma
unidade do direito, que inscreve as duas faculdades em um mesmo campo, e de um “espírito
de corpo”, próprio a cada uma delas. Dessa forma, o ensino jurídico considerado de excelência
reveste-se de coesão assegurando não apenas sua existência, mas também a concorrência entre
as faculdades de direito.
Palavras-chave: Ensino jurídico. “Espírito de corpo”. Excelência jurídica. São Paulo.
1 O presente artigo é fruto de uma pesquisa de três anos de duração (2015-2018) financiada inicialmente pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (2015) e depois pela Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (Processo nº 2015/11519-2), resultando, por fim, em uma
monografia de conclusão de curso (RONCONI, 2018). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7487-477X
2 Doutoranda no Centre Européen de Sociologie et de Science Politique (CESSP-EHESS) e no Programa de Pós-
-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo. E-mail: jessica.ronconi.fernandes@gmail.
com
Entre “espírito de corpo” e unidade do direito: denições de excelência e recrutamento
social em duas faculdades tradicionais de São Paulo | Jéssica Ronconi
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1. Introdução
Ao longo da história do Brasil e do ensino superior brasileiro, a formação
jurídica sempre ocupou uma posição de destaque devido a seu papel pio-
neiro na fundação, em 1827, das Academias de Direito de São Paulo e de
Olinda e na construção de um Brasil recém-independente. Por essa razão, a
formação jurídica foi objeto de diversas pesquisas, seja para compreender a
constituição do corpo político, burocrático e intelectual nacional (ADOR-
NO, 1988; COELHO, 1999; SCHWARCZ, 2012), seja para investigar as
transformações e adaptações institucionais do ensino jurídico ao longo da
história do país (BORDIGNON, 2017; CARLOTTO, 2014), ou ainda
para lançar luz sobre o campo do direito brasileiro (ALMEIDA, 2010;
ENGELMANN, 2006).
A existência de trabalhos tão fundamentais para a discussão sobre a
formação jurídica nacional não dispensa, contudo, a análise das concepções
de excelência e do recrutamento social do ensino jurídico na contempora-
neidade. Ao compreender o direito como uma instituição dotada de uma
“autoridade jurídica” investida na produção de discursos e efeitos legítimos
ou, em outras palavras, sendo o direito um instrumento de poder simbó-
lico e prático que legitima princípios de visões e de divisões de mundo
(BOURDIEU, 2001, p. 209-254), o estudo do ensino do direito se tor-
na fundamental para a compreensão da transmissão dos saberes jurídicos
como parte das disputas pela denição legítima de excelência jurídica.
A criação de novos cursos de direito e a intensicação de sua expansão
nas décadas de 1990 e 2000 mudaram a paisagem da formação jurídica no
Brasil (BRITO, 2009). Em 2017, segundo o INEP (2019a), foram contabi-
lizados 1.203 cursos de direito no país, dos quais 229 estavam no estado de
São Paulo. Diante desse cenário, o presente artigo analisa a formação jurídica
contemporânea de duas tradicionais faculdades paulistanas de direito: a da
Universidade Presbiteriana Mackenzie e a da Universidade de São Paulo3,
ambas dotadas de grande prestígio social – principalmente em razão da anti-
guidade no campo e das altas posições ocupadas por seus bacharéis no espaço
3 O antagonismo entre as duas instituições já foi explorado principalmente no que tange à “batalha da Maria
Antônia”. Ver mais em: Maria Antônia: uma Rua na Contramão (SANTOS, 1988).
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Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 21 - Nº 52 - Set./Dez. de 2022
prossional do direito, como veremos adiante. A investigação das “preferên-
cias acadêmicas” (PULICI, 2008), do recrutamento social e das autorrepre-
sentações dessas instituições teve como objetivo compreender as disposições
e estratégias que lhes permitem permanecer dominantes nesse novo espaço
expandido do ensino do direito em São Paulo.
As denições de excelência jurídica emanadas pelas duas faculdades de
direito são produzidas a partir de uma dupla condição, ao mesmo tempo
complementar e contraditória: de um lado, o habitus próprio às elites ju-
rídicas (ALMEIDA, 2010, p. 72) e compartilhado pelos agentes das duas
instituições faz com que eles se reconheçam enquanto pares; de outro lado,
o “espírito de corpo”4 próprio a cada uma das faculdades promove a concor-
rência entre elas e identica seus membros separadamente. Dessa forma, elas
buscam se distinguir ao mesmo tempo em que estabelecem as fronteiras do
espaço do ensino jurídico de excelência. Esses dois aspectos, a unidade do
direito e o “espírito de corpo”, puderam ser percebidos através do exame dos
programas curriculares dos cursos de direito e dos TCCs de seus estudantes
referentes ao ano de 2015, bem como pelo recrutamento social de seu aluna-
do, apreendido pelos questionários aplicados junto aos ingressantes de 2016;
pela análise dos currículos lattes dos professores, coletados em 2017 e que
deram origem a uma Análise de Correspondência Múltipla (ACM); e por
meio de entrevistas realizadas com alguns docentes em 2018.
O presente texto está organizado, além da introdução, em mais seis
partes. A segunda seção reconstitui o espaço do ensino jurídico paulista
para, então, expor as autorrepresentações das duas faculdades de direito;
a terceira se debruça sobre as propriedades e aspirações sociais do corpo
discente; a quarta evidencia os conitos internos entre a faculdade e seus
estudantes; a quinta investiga as hierarquias das áreas jurídicas presentes
nas duas faculdades e, por m, a última seção trata das trajetórias e das
posições e disposições acadêmicas e prossionais dos docentes de direito.
4 Con junto de c ritérios tá citos revest idos do sentimento de pertencimento e solidariedade com o grupo a que pertence
e que se manifesta em esquemas de percepção, apreciação, pensamento e ação de seus membros a partir de incons-
cientes bem orquestrados (BOURDIEU, 1989, p. 112).

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