Estatuto do contribuinte: conteúdo e alcance

AutorProf. Humberto Ávila.
CargoAdvogado em Porto Alegre. Professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS) e da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul (AJURIS)
Páginas1-25

Advogado em Porto Alegre. Professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS) e da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul (AJURIS). Doutor em Direito (Doctor juris) e Certificado de Estudos em Metodologia da Ciência do Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito e Especialista em Finanças pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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Introdução

A expressão "Estatuto do Contribuinte" denota um conjunto de normas que regula a relação entre o contribuinte e o ente tributante.1Page 2 Sua utilização possui conotação tanto garantista dos direitos dos contribuintes quanto limitativa do poder de tributar.

Causa espanto examinar o "Estatuto do Contribuinte" no direito brasileiro. É que não se tarda a perceber um descompasso entre aquilo que é previsto pelo direito positivo e aquilo que é descrito pela doutrina e concretizado pela jurisprudência.

De um lado, a análise da Constituição Brasileira de 1988 revela uma enormidade de dispositivos que servem como pontos de partida exatamente para garantir os direitos dos contribuintes e para limitar o poder de tributar: princípios, direitos e garantias fundamentais, princípios tributários, definição de espécies tributárias e extensas regras de competência. De outro, o exame da doutrina põe a descoberto tanto a circunscrição de sua atividade, com notáveis exceções, à mera descrição do ordenamento jurídico, quanto sua dificuldade em constituir o conteúdo semântico daquelas normas jurídicas por ela própria qualificadas de fundamentais - os princípios jurídicos; e o estudo da jurisprudência manifesta a ineficácia dos direitos fundamentais enquanto normas protetoras dos direitos dos contribuintes e dos princípios fundamentais como normas limitadoras do poder de tributar.

Por que existe essa disparidade? Este estudo responde a essa questão, apresentando uma alternativa interpretativa que, unificando pontos de vista analíticos e dialético-hermenêuticos, expõe os obstáculos que ainda impedem a construção integral do "Estatuto do Contribuinte" no direito brasileiro.

I Fundamentos da constituição do "estatuto do contribuinte"
A Redefinição da função da Ciência do Direito
1. Distinção entre norma e dispositivo e sistema interno e externo

Os primeiros obstáculos à delimitação integral do "Estatuto do Contribuinte" residem na indevida equiparação entre norma e dispositivo e entre sistema interno e sistema externo.

É preciso distinguir a norma do dispositivo. Norma não é o texto nem o conjunto deles. Norma é o conteúdo de sentido construído a partir da interpretação sistemática de textos normativos.2 Os dispositivos consistem no objeto da interpretação; as normas, no seu resultado. É equivocada, pois, a afirmação de que a Constituição de 1988 possui uma inigualável quantidade de normas que garantem os direitos dos contribuintes e limitam o poder dePage 3 tributar. A Constituição de 1988 nada mais possui do que um maior número de pontos de partida para a construção dos direitos dos contribuintes e das limitações ao poder de tributar. É preciso não confundir o ponto de partida com o de chegada.3

É também necessário estremar o sistema externo do interno. O sistema tributário não se resume ao conjunto de dispositivos que dizem respeito expressa e imediatamente à matéria tributária. O critério ratione materiae apenas focaliza o elemento exterior do sistema jurídico, deixando intacta a multiplicidade e a mobilidade das relações sintáticas e semânticas a serem construídas pelo intérprete.4 A análise do elemento exterior conduz até o sistema tributário externo. Em vez da matéria, é preciso construir uma sistematização do conteúdo de sentido dos dispositivos que protegem expressa ou implicitamente, imediata ou mediatamente os bens jurídicos - situações, objetos ou estados juridicamente protegidos - restringidos pela concretização da relação obrigacional tributária. Só a compreensão do direito tributário por meio do exame unificador das normas que resguardam os direitos de liberdade e de propriedade permite a elaboração do sistema tributário interno.5 É desacertada, pois, afirmação de que o sistema tributário se resume aos artigos 145 a 162 da Constituição de 1988. Esses dispositivos nada mais são do que uma parte dos pontos de partida para a concepção do sistema tributário. O próprio texto constitucional já fornece uma pista ao prescrever que o sistema tributário também inclui outras garantias asseguradas ao contribuinte (art. 150, caput), quer aquelas expressamente disciplinadas, quer aquelas decorrentes dos princípios fundamentais adotados pela Constituição (art. 5º , § 2º ). É necessário não baralhar o início com o fim.

Assim analisada a questão, determinadas características atribuídas ao sistema tributário brasileiro - rigidez e exaustividade - merecem maior atenção. O sistema tributário é qualificado como rígido, porque as principais normas da tributação, estando previstas na própria Constituição, ou não podem ser modificadas, se consideradas como garantias fundamentais (art. 60, § 4º ), ou exigem um procedimento parlamentar específico, mais complexo do que o previsto para a alteração da legislação ordinária; e como exaustivo, porque a própria Constituição esgota todas as questões relativasPage 4 aos princípios tributários e às regras de competência.6 O sistema tributário até pode ser qualificado de rígido, se e enquanto a rigidez indicar tão-só o procedimento mais complexo exigido para sua alteração; de exaustivo, desde que isso demonstre que o intérprete deve construir todas as soluções a partir do sistema constitucional externo. Entender rigidez como imobilidade das relações internormativas e exaustividade como pré-determinação absoluta do sentido normativo pelos dispositivos constitucionais será misturar, uma vez mais, o termo inicial com o final.

2. Distinção entre descrição e construção

Em face das considerações anteriores, resulta absolutamente claro que o "Estatuto do Contribuinte" não é predizível pelo texto da Constituição de 1988. Ao contrário: ele deve ser coerentemente construído. Isso porque, sendo o direito vertido em linguagem, o trabalho do intérprete não se caracteriza como reconstrução de algo anterior, mas sempre como constituição de algo novo.7

É inexato, pois, definir a interpretação como mera descrição do significado, quer no sentido de comunicação de uma informação ou conhecimento a respeito de um texto, quer no sentido da intenção do seu autor. De um lado, a compreensão da significação como o conteúdo conceptual de um texto pressupõe a existência de uma significação intrínseca que independa do uso ou da interpretação. Isso, porém, não ocorre, pois o significado não é algo incorporado às palavras, mas algo que depende precisamente do uso e da interpretação, como comprovam a modificação de sentido das palavras no tempo e no espaço e as controvérsias doutrinárias a respeito do sentido mais adequado de um texto legal. De outro lado, a concepção da significação como a intenção do legislador pressupõe a existência de um autor determinado e de uma vontade unívoca fundadora do texto. Isso, no entanto, também não sucede, pois o processo legislativo qualifica-se justamente como um processo complexo que não conhece nem um autor individual nem uma vontade específica. Sendo assim, a interpretação não se caracteriza como um ato de descrição de um significado previamente dado, mas como um ato de decisão que constitui uma significação de um texto.8 A questão nuclear disso tudo está no fato de que o intérprete não atribui "o" significado correto aos termos legais; ele tão-só constrói exemplos de uso da linguagem ou versões de significado, já que a linguagem nunca é algo pré-dado, mas algo que se concretiza no uso ou,Page 5 melhor, como uso.9 As fontes do direito são possibilidades dele, que devem ser completadas por algo que se situa fora delas.10

Do exposto resultam duas conclusões. Em primeiro lugar, a função da doutrina e da jurisprudência não consiste em meramente descrever o significado do "Estatuto do Contribuinte", mas em continuamente constituí-lo. Equipará-lo aos dispositivos contidos na Constituição de 1988 será, novamente, igualar o objeto com o resultado da interpretação. Em segundo lugar, não se podendo equiparar as fontes do direito com as normas que a partir delas podem ser construídas, jamais se pode contar com a realização do "Estatuto do Contribuinte" porque ele está expressamente previsto em uma fonte normativa, seja ela qual for.11

O exposto atesta por que a doutrina e a jurisprudência, ao examinarem o tema relativo às limitações ao poder de tributar, circunscrevemse, em regra, à investigação do seu sentido negativo: proibição de instituição de tributos por meio de instrumentos diversos da lei; proibição de eficácia antes do início do exercício seguinte ao da edição da lei, etc. Ora, restringindo-se a interpretação à...

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