Equiparação estrutural

AutorVicente de Paula Maciel Júnior
CargoDoutor em Direito pela UFMG
Páginas153-170

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É preciso terceirizar a prosperidade e não a miséria. É fundamental equiparar a partir da prosperidade. A miséria iguala, ofende, avilta, revolta. Destrói ideologias e promove revoluções. A miséria não tem religião, difunde o desespero, enfraquece o corpo e aniquila a alma. Ela retira o que resta de dignidade. Impede qualquer compreensão racional porque ela é o moto contínuo do caos... Aqueles que lhe são indiferentes e lhe manifestam aversão e repugnância, conhecerão um dia sua face descarnada e seu profundo olhar inquietante. Aqueles que se preocupam com ela, talvez lhes restem culpa ou compaixão. Aqueles que fazem algo contra ela ao menos são capazes de compreender sua dimensão.

Vicente Maciel Jr.

EMENTA: Este trabalho pretende examinar o tema da equiparação salarial na perspectiva da estruturação moderna da organização do trabalho pelo empregador. O tema da equiparação merece ser revisto à luz do novo modelo constitucional brasileiro e adaptado às novas condições e exigências impostas pelo modelo de produção, para que permaneça como eficaz instrumento jurídico contra as políticas discriminatórias de remuneração. A proposta abrange a identificação dos requisitos legais da equiparação salarial na nova sistemática de produção, que muitas vezes fragmenta as funções antes exercidas por um único empregado no intuito de descaracterizar e enfraquecer as conquistas alcançadas pelas categorias profissionais. O ponto central é a proposta de equiparação estrutural, que significa a possibilidade de a análise do fenômeno da equiparação ser identificado a partir da estruturação das atividades segundo

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as exigências do empregador, como forma de tipificar as situações fáticas no enquadramento legal do art. 461 da CLT .

1. Introdução

Os homens são iguais? Eles merecem igual remuneração desde que se comportem de modo padronizado considerando as expectativas de condições de trabalho vigentes em determinado tempo? Quem tem mais tempo no trabalho tem mais direitos de quem nele entrou agora? A partir de quando eu posso pedir o direito de ser tratado igualmente, sem diferença de remuneração? O mundo globalizado comporta tratamentos diferenciados entre brasileiros e estrangeiros?

Essas questões não são novas e surgiram desde quando o Direito do Trabalho começou a ser reconhecido e universalizado como uma forma de reprimir a exploração do homem pelo homem (em razão da relação CAPITAL X TRABALHO), principalmente em função das péssimas condições de trabalho que surgiram após o fim da escravidão.

A mão de obra gratuita passa a ser remunerada, mas a preferência foi pelo trabalho da mulher e do menor, pelo fato de que ganhavam salários menores que os dos homens. Esses fatos mereceram coibição pelo Direito do Trabalho. Paralelamente a esse problema, a difusão das empresas de capital estrangeiro, em atuação em diversos países, chamou a atenção para a prática discriminatória segundo a qual a empresa estrangeira pagava salários maiores aos empregados oriundos de seu país sede, do que aqueles que pagava aos empregados do país onde a empresa atuava. (SÜSSEKIND, 2005, p. 429)

Diante da relevância do tema, surgiram tentativas de regulamentação da matéria, no intuito de criar parâmetros gerais de uniformização, destacando-se, por sua importância, o Tratado de Versailles, que em seu art. 427, 7, dispôs sobre o “salário igual, sem distinção de sexo, para trabalho de igual valor”. Em seu art. 427, 8, o Tratado de Versailles sugeriu “que as regras que em cada país se ditem, a respeito das condições de trabalho, deverão assegurar um tratamento econômico equitativo a todos os operários que residem legalmente no país”.

Essa norma foi fonte de inspiração para as legislações de diversos países e em 1951 foi firmada a Convenção n. 100 a respeito da igualdade de remuneração para trabalho de igual valor entre homens e mulheres. Em 1958, foi aprovada a Convenção
n. 111 referente à discriminação em matéria de emprego e profissão. Ambas as convenções foram ratificadas pelo Brasil.

No direito positivo brasileiro, a equiparação salarial por trabalho de igual valor foi concebida a partir do Decreto n. 20.261, de 29.7.1931, sendo uma decorrência dos objetivos perseguidos pela Revolução de 1930, no sentido de vedar o pagamento de salários maiores aos estrangeiros, quando eles trabalhassem em condições análogas à de um trabalhador brasileiro. Posteriormente, o Decreto-lei n. 1.843, de 7.12.1939

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manteve o princípio da equiparação, mas ainda com pertinência apenas à tutela do trabalhador nacional. (SUSSEKIND, 205, p. 429/430)

Em um quadro comparativo do tratamento da matéria da equiparação salarial em sede constitucional, poderíamos destacar a seguinte situação:

Constituição: 1934, art. 121, § 1º.

— adotou a isonomia salarial para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil.

Constituição de 1937

— omissa quanto ao tema da equiparação.

Constituição de 1946

— repetiu o dispositivo da Constituição de 1934.

Constituição de 1967

— em seu art. 165, III mencionou a proibição de diferenças de salários e de critério de admissões por motivo de sexo, cor e estado civil.

Constituição de 1988

— em seu art. 7º, XXX e XXXI, proíbe a diferença de salário, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; bem como qualquer discriminação salarial em relação ao trabalhador portador de deficiência.

Na legislação infraconstitucional, a CLT reconhece a equiparação salarial entre o homem e a mulher por trabalho de igual valor, no art. 5º. No art. 461, estabelece um sistema geral para análise da equiparação, exigindo identidade de funções, independentemente do trabalho de igual valor. E, no art. 358 da CLT a equiparação tem como motivo a igualdade salarial entre o brasileiro e estrangeiro quando aquele exercer função análoga à deste.

É a partir desse quadro evolutivo da tutela ao trabalhador, desde a norma convencional internacional, passando pelas legislações constitucional e infraconstitucional que construiremos nosso raciocínio sobre o novo momento em que vivemos, tudo sem desprezar o sentido que vem sendo dado aos textos normativos pela jurisprudência pátria.

2. Os requisitos legais da equiparação salarial
2.1. Trabalho de igual valor

A palavra valor foi usada desde a Antiguidade para indicar a utilidade ou o preço dos bens materiais e a dignidade ou o mérito das pessoas, apresentando uma questão de conteúdo econômico. O seu sentido varia conforme sua utilização em outros campos de indagação, como na filosofia. (ABBAGNANO, 1982, p. 952-956)

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Para Fernando Américo Veiga Damasceno1, analisando a expressão na perspectiva do Direito do Trabalho, a produtividade aliada ao zelo do empregado no desempenho de suas atividades conduz à atribuição de maior ou menor valor para seu trabalho e repercute na fixação dos parâmetros salariais. Para o autor, é regra de equidade que o empregado mais produtivo qualitativa e quantitativamente seja melhor remunerado. Conclui que seria injusto pagar o mesmo salário ao empregado que se esforça e colabora com o empregador em comparação com outro que se limita a cumprir as obrigações contratuais.

A questão da atribuição de valor ao trabalho envolve sempre uma dificuldade por ser tema com implicações de ordem cultural, social,2 política, econômica, ética, etc. E questão de especial importância nessas cogitações abrange a evolução histórica do trabalho e suas modificações, especialmente em face da tecnologia da informação e o desenvolvimento tecnológico, que alteraram profundamente o perfil do modus operandi das atividades e relações de trabalho.

Exemplificando: uma empresa americana pode contratar um trabalhador indiano para o desenvolvimento de software relativo à sua atividade bem como pelo suporte até a efetiva operacionalização da ferramenta. Essa contratação pode dar-se on-line. O trabalho pode ser enviado on-line. O suporte pode durar alguns meses, ou anos, e ser feito on-line. O pagamento pode ser enviado diretamente para a conta do trabalhador indiano por transferência bancária on-line. E a dispensa pode dar-se também por uma simples comunicação via e-mail de que o serviço não é mais necessário.

Talvez para todos em seu país, que vissem esse trabalhador indiano sentado à frente de um computador, digitando freneticamente, sem sair de casa, sem “trabalhar”, ele fosse considerado um excêntrico, um alienado, um desocupado, um “viciado cibernético”. Entretanto, aquele rapaz estava trabalhando, e muito, e ganhando dinheiro, talvez muito mais do que qualquer outro membro da família que saía de casa às cinco horas da manhã para retornar ao final do dia (mesmo que ele não tivesse tempo para gastar seu dinheiro porque estava “trabalhando”). A sua atividade afetou a vida de milhares de pessoas em outro país e teve um “valor” inestimável...

A legislação seguramente não evoluiu no sentido de estabelecer garantias ao trabalho realizado nessas condições, que hoje se desenvolve à margem do Direito, inclusive desconsiderando a proteção do trabalhador nacional em face do estrangeiro prevista nos tratados internacionais acima citados na introdução.

Há hoje uma “ordem” apesar e além da “ordem jurídica”. Esse conjunto de linguagens digitais estabelece conexões que os ordenamentos jurídicos estatais não conseguem “controlar”.

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Qual é o valor de um trabalho hoje em dia pressupondo esse panorama?!! Quem se arrisca a valorizar o trabalho de outrem sem possibilidade de errar?!

Por essas razões que falseiam e obscurecem o problema do valor do trabalho, na maioria das vezes, estabelecendo critérios subjetivos e que acabam por desvalorizar...

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