Eu, Algoritmo. A precarização do trabalho humano

AutorSandro Nahmias Melo
CargoJuiz do Trabalho Titular ? TRT da 11ª Região
Páginas65-70
Revista da Academia Brasileira de Direito do Trabalho 65
Eu, Algoritmo. A precarização do trabalho humano
I, Algorithm. The insecurity of human work
Sandro Nahmias Melo
(1)
(1) Juiz do Trabalho Titular– TRT da 11ª Região. Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. Professor Adjunto da
Universidade do Estado do Amazonas (Graduação e Mestrado). Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho (cadeira
20). Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 11ª Região– AM e RR (Biênio 2019-2021).
(2) 2001: A Space Odyssey é um filme de ficção científica de 1968 produzido e dirigido por Stanley Kubrick, coescrito por Kubrick
e Arthur C. Clarke baseado parcialmente no conto “The Sentinel” do próprio Clarke. Ver: 19 fatos que você provavelmente não
sabia sobre ‘2001: uma odisseia no espaço’. O Globo. 05.04.2018. Disponível em:
-fatos-que-voce-provavelmente-nao-sabia-sobre-2001-uma-odisseia-no-espaco-22556553>. Acesso em: 20 abr. 2020.
(3) ROSA, Natalie. Site inspirado em Black Mirror revela o quanto seu relacionamento vai durar. Caltech. 15 de fev. de 2018. Dis-
ponível em: ela-o-quanto-o-seu-relacionamento-vai-
-durar-108272/>. Acesso em: 20 fev. 2020.
(4) NEDER, Vinicius. Aumento do trabalho por conta própria pode ser estrutural, relacionado a aplicativos, aponta o Ipea. O Estado
de S. Paulo. 12 de dez. de 2019. Disponível em: abalho-por-
-conta-propria-pode-ser-estrutural-relacionado-a-aplicativos-aponta-ipea,70003123328>. Acesso em: 20 fev. 2020.
Resumo:
A ideia de total autonomia dos trabalhadores vinculados às plataformas de prestação de serviços não se coaduna com realidade
atual da economia de compartilhamento. Algoritmos desenvolvidos para gerenciar o trabalho humano priorizam as metas das platafor-
mas de serviços, sem considerar os custos materiais e pessoais do trabalhador. Defende-se, neste ensaio, que o trabalhador de aplicativo
não é sujeito desprovido de direitos, ainda que considerado autônomo. Ao contrário, faz jus a um piso vital mínimo de direitos.
PalavRas-chave:
Algoritmo. Inteligência artificial. Uber; Trabalhador de aplicativo. Piso vital.
abstRact:
The idea of app workers’ full autonomy is not consistent with the current sharing economy reality. Algorithms developed to
manage human work prioritize the platforms goals, without considering the worker´s material and personal costs. It is argued in this essay
that the app worker is not a subject without rights, still as freelancer. On the contrary, he has basic rights.
KeywoRds:
Algorithm. Artificial intelligence. Uber. App worker. Basic rigths.
Sumário:
1. 2001, a odisseia. 2. Algoritmo e inteligência artificial. 3. Uberização e as leis dos algoritmos. 4. O meio
ambiente de trabalho em tempos de pandemia. 5. Piso vital mínimo. 6. Considerações finais. 7. Referências.
1. 2001, A ODISSEIA
O futuro chegou. A odisseia de 2001 – o filme(2) – e seus elementos nunca estiveram tão presentes: vídeocha-
madas, tablets e, em especial, a inteligência artificial e seus algoritmos. No século XXI, os algoritmos, apesar de
invisíveis, são onipresentes. Algoritmos gerenciam dinheiro, relacionamentos – de amizade até os mais íntimos –,
lazer e, como não, trabalho. O Big Brother dos algoritmos e das inteligências artificiais, vaticinado por Kubrick,
também é realidade na vida de qualquer portador de smartphones. O HAL 9000 encolheu, cabe agora na palma
da mão. Nossos hábitos e preferências são registrados e avaliados constantemente. Com base nestes dados, um
algoritmo pode não só indicar filmes e músicas, mas também o par romântico ideal para alguém e, ainda, estimar
quanto tempo durará o relacionamento.(3)
O trabalho, tal qual o do astronauta de 2001, também sofre constante intervenção e vigilância das IAs. Pes-
quisas têm demonstrado, no Brasil de 2020, o crescimento significativo do trabalho intermediado por aplicativos,
estes, por sua vez, gerenciados por algoritmos: transporte de pessoas, refeições e documentos; serviços especia-
lizados em aulas particulares, consultas médicas e até goleiros para viabilizar a pelada de final de semana. A lista
tem crescido na proporção inversa da economia e do emprego formal.(4)
Os aplicativos além conectados ao trabalho informal, também têm afetado a atividade de algumas profissões: ta-
xista, operador de telemarketing, corretores de bolsa de valores, entre tantas outras. Ora, nos dias de hoje, até nosso
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agente de viagens é um algoritmo que nos sugere rotas, passagens, estadia, seguro e locação de veículos, sendo todo
o negócio celebrado via smartphone, sem qualquer contato humano. Mais uma profissão sob risco de extinção.
Algumas questões subsistem. Qual é participação dos onipresentes algoritmos nos serviços onde a ação huma-
na é, ainda, essencial? São intermediários ou gestores de serviços? As respostas exigem a compreensão da estrutu-
ra, função e objetivos dos algoritmos.
2. ALGORITMO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Esclareça-se que os algoritmos, na informática, constituem uma representação matemática de um processo para
a realização de uma tarefa, tal qual uma receita de bolo(5). Um verdadeiro passo a passo, em fluxograma estruturado,
para tomada de decisões que permitirão a conclusão da tarefa. E dentre as tarefas mais executadas por aplicativos no
Brasil o destaque tem ser reservado para o transporte de pessoas, onde é indiscutível a proeminência do Uber, geran-
do a até o neologismo Uberização(6). Aqui uma pergunta se impõe: quais são as diretrizes para o cumprimento da
tarefa a que se propõe o algoritmo que rege a plataforma Uber, bem como de outros de igual natureza? Quais as “leis
internas” que governam o fluxograma? E como essas leis consideram o elemento humano da equação: o motorista?
Isaac Asimov, ao escrever o livro “Eu, Robô”(7) e, obrigatoriamente, ao tratar de inteligência artificial, propôs
as três leis da robótica. Importante destacar que estas leis têm um grande paradigma: o ser humano. A primeira lei
determina que: “um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal”;
a segunda estabelece que “um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos exceto nos casos
em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei”; a terceira e última lei dispõe que “um robô deve proteger
sua própria existência desde que tal proteção não entre e conflito com a Primeira ou Segunda Leis”. As leis foram ima-
ginadas como passo a passo de segurança na relação entre humanos e robôs. Na prática, tratam do relacionamento
da inteligência humana com a inteligência artificial. Feito este registro, importa perguntar se tais leis teriam in-
cidência no mundo atual dos aplicativos?, dos algoritmos? estes considerados como base para o estabelecimento
de uma inteligência artificial? Diante das evidências atuais, parece-nos negativa a resposta. Se não, vejamos nós.
A intermediação dos serviços de transporte por plataformas, com gerenciamento de serviços humanos por
algoritmos, tem uma marca distintiva: a ausência de visualização de uma figura humana na gerência dos serviços.
Do ponto de vista da execução de uma tarefa, qual a diferença entre uma agência física – cooperativa ou não – que
oferece serviços de transporte e um aplicativo com idêntico objetivo? Não é outra senão a dificuldade de identi-
ficação de uma figura humana na gerência. A intermediação pela plataforma, entretanto, com serviço gerenciado
pelo algoritmo, não elimina a figura de um gestor humano, programador ou dono da plataforma.
A falta de visualização de um gestor humano coopera com a percepção – estruturalmente equivocada – de que o
motorista de aplicativo tem total autonomia no desenvolvimento do seu trabalho, já que não responde a ninguém –
humanamente considerado. O motorista de aplicativo, segundo estudo detalhado do Ministério Público do Traba-
lho(8), tem sua atividade coordenada sim. Ponto. A obrigação no cumprimento de inúmeras regras é evidência disso.(9)
3. UBERIZAÇÃO E AS LEIS DOS ALGORITMOS
Os serviços intermediados por plataformas, nos dias de hoje, desconectaram-se dos ideais que pautaram os pri-
mórdios da chamada economia de compartilhamento. O ideal – romântico – de uso compartilhado e sem custo de
(5) ELIAS, Paulo Sá. Algoritmos, inteligência artificial e o direito. Disponível em:
MO/algoritmos-inteligencia-artificial.pdf>. Acesso em: 21 fev. 2020.
(6) Cf. FELICIANO, Guilherme Guimarães; PASQUALETO, Olívia de Quintana Figueiredo. (Re)descobrindo o direito do trabalho:
Gig economy, uberização do trabalho e outras reflexões. JOTA. 6 de maio de 2019. Disponível em: .jota.info/
opiniao-e-analise/colunas/juizo-de-valor/redescobrindo-o-direito-do-trabalho-06052019>. Acesso em: 20 fev. 2020.
(7) ASIMOV, Isaac. Eu, Robô. Tradução Aline Storto Pereira. São Paulo: Aleph, 2014.
(8) Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2020.
(9) Segundo André Zipperer o motorista da Uber tem “proibição de ficar on-line na plataforma e ter uma taxa aceitação menor do
que a taxa referência da(s) cidade(s) nas quais atua; proibição de aceitar viagens e ter uma taxa de cancelamento maior do que
a taxa referência da(s) cidade(s) nas quais atua (...)”. ZIPPERER, André Gonçalves. A intermediação de trabalho via plataformas
digitais: repensando o direito do trabalho a partir das novas realidades do século XXI. São Paulo: LTr, 2019. p.78.
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furadeiras, bicicletas e outros bens ociosos, permaneceu... romântico. O poder multiplicador da internet “transfor-
mou pequenos grupos de compartilhamento com foco comunitário e sem fins lucrativos em... pequenos grupos de
compartilhamento com foco comunitário”(10). Os aplicativos que nasceram sob o ideal de compartilhamento sem
ônus seguem hoje a lógica do ditado popular inglês “o que é seu é meu, o que é meu é meu”. A título de exemplo,
os serviços de entrega já não mais simbolizam “uma ajuda entre vizinhos”; tornaram-se aplicativos onde o lucro é
auferido através do trabalho barato e sem condições de segurança, onde a “economia dos bicos” prevalece.
Precursores da economia de compartilhamento não aceitam a Uber como parte do movimento, mas, como já
exposto alhures, inevitável reconhecer que a plataforma, quer pelo protagonismo quer pelo gigantismo, tornou-se
a grande referência da economia de compartilhamento, dando origem ao neologismo Uberização. Nos aplicativos
disponíveis on line encontramos o “uber disso” e “uber daquilo” em verdadeira pletora de serviços variados. Na
prestação de serviços, entretanto, não há o compartilhamento efetivo de lucros e custos do empreendimento.
Apesar das plataformas defenderem a ideia de trabalho por conveniência dos “parceiros”, podendo estes traba-
lhar quando e quanto quiserem, esta “liberdade” conflita com o dever de cumprir objetivos definidos na progra-
mação do serviço, como fazer um número mínimo de corridas – estas sem limite máximo – , bem como não poder
exceder determinado limite cancelamento de viagens(11), tudo isso decidido de forma unilateral pelo algoritmo.
A liberdade de decidir é a mesma para qualquer outro desempregado diante da oferta de um emprego aquém das
suas expectativas: submissão, subordinação ou o mundo sem trabalho.
Os algoritmos que ditam o processo de precarização do trabalho humano são regidos por leis internas. Não há,
entretanto, a preponderância do paradigma humano. Nestas leis, diferentemente das de Asimov, o homem não é o
protagonista. Segundo as evidências do passo a passo dos algoritmos, no Brasil, pode-se inferir a adoção também
de três leis, que, em essência, parecem ditar que: 1ªo algoritmo deve coordenar o passo a passo do serviço humano,
com eficiência, para que a tarefa final seja cumprida e repetida em número sempre crescente; 2ªtoda coordenação dos
serviços humanos deverá ser processada de forma indetectável, sendo reiteradamente informada a condição de “parcei-
ro” ao prestador-humano, bem como ao tomador de serviços; 3ªa execução da 1ª e 2ª leis ocorrerá independentemente
de prejuízos materiais ou pessoais do prestador- humano. Nesta última norma, temos a irrelevância, para o cumpri-
mento da tarefa, dos custos (depreciação do automóvel, valor do combustível, multas, acidentes etc.) e riscos à
saúde (jornadas extensas, atividade estressante, adoecimento), em especial em tempos de pandemia, suportados
exclusivamente pelo prestador de serviços humano.
Abstraídas as leis acima presumidas, poderá se defender que ninguém está obrigado a ter o seu trabalho ge-
renciado por um aplicativo ou, mesmo trabalhando, que não está obrigado a se submeter às suas exigências, em
especial a arriscar contaminação pela Covid-19 em uma longa rotina de trabalho para ter renda suficiente para sub-
sistir. Ora, a liberdade de decidir é a mesma de qualquer desempregado diante da oferta de um emprego: submissão
ou o mundo sem trabalho. O trabalhador por aplicativos do século XXI tem a mesma liberdade do trabalhador da
1ª Revolução Industrial: trabalhar até 12(12) horas por dia, trabalhar, em meio a uma pandemia, com riscos à sua
saúde, para sobreviver ou não trabalhar.
Aqui se faz necessária definição de uma fronteira, o estabelecimento de um limite. Apesar do vínculo de em-
prego ser de difícil visualização quando o serviço é gerenciado por um algoritmo invisível(13), apesar de serem va-
riadas as rotinas de cada prestador de serviço – em linhas de diferença tênue tais quais aquelas que separaram um
vendedor empregado de um vendedor autônomo – , apesar de não serem necessariamente aplicáveis as normas da
CLT, é certo que o trabalhador de aplicativo não é um sujeito desprovido de direitos. Tem direitos fundamentais,
entre eles o da dignidade da pessoa humana e de sadia qualidade de vida no meio ambiente do trabalho. A linha
dessa fronteira deve ser o reconhecimento de um piso vital mínimo de direitos, bem como de responsabilidade da
plataforma com a higidez do meio ambiente de trabalho do obreiro.
(10) SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução de João Peres. São Paulo: Editora Elefante, 2017. p.14.
(11) ZIPPERER, André Gonçalves. A intermediação de trabalho via plataformas digitais: repensando o direito do trabalho a partir das
novas realidades do século XXI. São Paulo: LTr, 2019. p.78.
(12) Só muito recentemente a UBER propôs limitar a jornada de trabalho diária do motorista em 12 horas. Disponível em:
www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/03/04/uber-lanca-ferramenta-que-impede-motorista-de-dirigir-por-mais-de-12-ho-
ras.htm>. Acesso em: 20 mar. 2020.
(13) Disponível em: -auto-
nomo--e-acao-contra-empresa-compete-a-Justica-comum.aspx>. Acesso em: 26 fev. 2020.
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4. O MEIO AMBIENTE DE TRABALHO EM TEMPOS DE PANDEMIA
Em tempos da pandemia Covid-19, o isolamento social se tornou um privilégio de poucos. #Fiqueemcasa,
não se contamine e, qualquer coisa, peça para entregar. Os serviços de entrega, nestes tempos difíceis, tornaram-se
atividades essenciais e cresceram exponencialmente. A título de exemplo, a plataforma de transporte de alimentos
iFood, que opera em mais de 1 mil cidades em todo o Brasil, recebeu em março de 2020 175 mil inscrições de
candidatos interessados em atuar como entregadores da plataforma ante 85 mil em fevereiro do mesmo ano(14).
Completamente expostos ao risco de contaminação pelo coronavírus entregadores de aplicativos estão encurra-
lados entre a necessidade econômica, os riscos de atividade e uma “parceria” desigual. O trabalhador por aplica-
tivos do século XXI tem a mesma liberdade do trabalhador da 1ª Revolução Industrial: trabalhar em ambiente de
risco até 12(15) horas por dia para sobreviver ou não trabalhar. A ideia de “parceria” defendida pelas plataformas
de aplicativos encontra ressonância com a realidade fática? A prestação de serviços é realmente marcada por total
autonomia e, portanto, desonera a plataforma de qualquer responsabilidade com os riscos à saúde do trabalhador?
Parecem-nos negativas as respostas.
Mesmo admitida como válida a ideia de parceria, cumpre registrar, como já observado em na obra “Meio am-
biente do trabalho: direito fundamental”(16) o conceito de meio ambiente é amplo não está adstrito ao local, ao es-
paço, ao lugar onde o trabalhador exerce suas atividades. Ele é constituído por todos os elementos que compõem
as condições (materiais e imateriais, físicas ou psíquicas) de trabalho de uma pessoa.
Mais importante, o conceito de trabalho humano ou de trabalhador, para fins da definição do meio ambiente
do trabalho, não está atrelado necessariamente a uma relação de emprego subjacente e sim a uma atividade produ-
tiva. Todos aqueles que prestam trabalho têm o direito fundamental de realizá-lo em um local seguro e saudável,
nos termos do art. 200, VIII, c/c art. 225 da CF/88, considerado assim tanto o empregado clássico quanto os tra-
balhadores autônomos, terceirizados, informais, eventuais e outros. Todos, enfim, que disponibilizam sua energia
física e mental para o benefício de outrem, inseridos em uma dinâmica produtiva. O conceito de meio ambiente do
trabalho deve abranger, sobretudo, as relações interpessoais – relações subjetivas – especialmente as hierárquicas
e subordinativas, pois a defesa desse bem ambiental espraia-se, em primeiro plano, na totalidade de reflexos na
saúde física e mental do trabalhador.
Assim, como já exposto, ainda que prevalentes as ideias – desconectadas da realidade – de “parceria”, de au-
tonomia total na prestação de serviços do trabalhador de aplicativo, este tem direito à sadia qualidade de vida no
meio ambiente do trabalho, incumbindo à plataforma o dever de zelar pelas condições de saúde e segurança no de-
senvolvimento da tarefa. Neste sentido, decisão judicial em ação civil pública, com abrangência nacional, obrigou
as plataformas iFood e Rappi a fornecerem materiais de higienização aos entregadores de mercadorias e refeições.
Além disso, empresas foram obrigadas a oferecer espaços para a higienização de veículos, bags que transportam as
mercadorias, capacetes e jaquetas, bem como credenciar serviços de higienização. Por fim, a decisão determinou
que as plataformas digitais pagassem o equivalente à média dos valores diários pagos nos 15 dias anteriores à de-
cisão, garantindo, pelo menos, o pagamento de um salário mínimo mensal. A medida abrangeu trabalhadores que
integram grupo de alto risco (como os maiores de 60 anos, os portadores de doenças crônicas, imunocomprome-
tidos e as gestantes) ou aos afastados por suspeita ou efetiva contaminação pelo vírus.(17)
O risco do trabalho desenvolvido em serviços de entrega durante a pandemia não é pequeno. O depoimento
de trabalhador desta área é revelador:
“Minha mãe a todo momento me pede para parar: ‘Para, para, para’. Insiste nessa ideia de eu parar, e eu
insisto na ideia de que preciso continuar trabalhando”, desabafa o entregador que começou uma mobilização
(14) MELLO, Gabriela. Candidatos a entregador do ifood mais que dobram após coronavírus. Reuters. 01.04.2020. Disponível em:
-
rus.htm>. Acesso em: 24 abr. 2020.
(15) Só muito recentemente a UBER propôs limitar a jornada de trabalho diária do motorista em 12 horas. Disponível em:
www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/03/04/uber-lanca-ferramenta-que-impede-motorista-de-dirigir-por-mais-de-12-ho-
ras.htm>. Acesso em: 20 mar. 2020.
(16) MELO, Sandro Nahmias. Meio ambiente do trabalho: direito fundamental. São Paulo: LTr, 2001.
(17) Agência Brasil. 05.04.2020. Disponível em:
vem-garantir-assistencia-a-entregadores-contaminados.htm>. Acesso em: 20 abr. 2020.
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para que as empresas de aplicativo distribuam álcool em gel e alimentação aos entregadores. Com medo de
contrair o vírus na rua e levá-lo para a filha de 2 anos e a avó debilitada, de 86, Paulo vê-se encurralado diante
da necessidade e do risco”(18)
Esta realidade aguda, entretanto, como apontado alhures, não encontra sensibilidade humana na gestão do
serviço realizada por um algoritmo:
“No último dia 21, data do seu aniversário de 31 anos e, em meio à crise do coronavírus, Paulo teve um
problema, não conseguiu dialogar com o robô da Uber Eats e acabou bloqueado pelo app. ‘Um robô não é
um ser orgânico, humano, que vai entender todas as situações, que é o aniversário do motoboy, por exemplo,
que o motoboy precisa muito e que informou sobre o ocorrido. Eles não querem saber, simplesmente veem a
automatização e bloqueiam’, diz. Além dessa empresa, há cerca de 9 meses o rapaz também faz entregas para
o iFood e Rappi”.(19)
Conclui-se, após as digressões supra, que o direito à sadia qualidade de vida de todo trabalhador, empregado
ou não (art. 225 c/c inc. VIII, art. 200 CF/88) se estende ao trabalhador de aplicativos, em especial em tempos de
pandemia. Aqui deve prevalecer, na obrigação das plataformas em prover EPIs e condições seguras de trabalho, o
princípio ambiental da prevenção.
5. PISO VITAL MÍNIMO
O trabalhador de aplicativos – ainda que considerado autônomo – não é sujeito desprovido de direitos. Como
observado alhures, tem direitos fundamentais, entre eles o da dignidade da pessoa humana e de sadia qualidade
de vida no meio ambiente do trabalho. Entende-se que a linha de fronteira deve ser o reconhecimento de um piso
vital mínimo de direitos, correspondentes às necessidades básicas de todo trabalhador, sem o quais a dignidade –
como pessoa – e a sadia qualidade de vida, estarão sendo sistematicamente negadas ao trabalhador de aplicativo.
A título de proposta de reconhecimento, que independe de ação legislativa, defende-se que este piso vital
mínimo encontra sua ressonância nas próprias raízes do Direito do Trabalho. A gênese do direito do trabalho está
indissociavelmente ligada ao início da luta pelo direito a uma jornada de trabalho com limite. O próprio inc. XIII,
art. 7º da Constituição da República estabelece a diretriz de que todo o trabalhador tem direito a uma jornada de
trabalho com limite diário. Não é legalmente admissível que o algoritmo, gerenciador das tarefas do trabalhador
humano, permita, ou pior, estimule jornadas diárias de 12 horas trabalho. O limite constitucional de 8 horas diá-
rias deve ser observado, observadas as exceções previstas constitucionalmente.
Ainda como proposta de reconhecimento, temos o princípio geral de responsabilidade no ordenamento jurí-
dico pátrio, plenamente aplicável aos acidentes e afastamentos do trabalhador de aplicativo, decorrentes de seu
labor. Esta deve recair sobre o gestor do negócio, dono do algoritmo, que lucra, até o momento, sem risco algum.
A título de exemplo, o custo com o tratamento médico de motociclistas de aplicativos, entregadores em tempos
de pandemia, tem sido suportado integralmente pelo SUS, pelo Estado. Imperiosa nestes casos, tal qual INSS faz
em caso de acidentes de trabalho de empregados(20), é a ação regressiva proposta pelo Estado. Só no município de
São Paulo os valores ressarcidos seriam, pelo número de acidentes, milionários(21).
Por fim, em tempos de pandemia, os riscos da atividade – gerenciada por frios algoritmos – não podem ser
suportados integralmente pelo “parceiro” trabalhador. As plataformas que gerenciam o trabalho, em especial, dos
entregadores, devem assumir a responsabilidade em garantir o direito fundamental de sadia qualidade de vida no
meio ambiente do trabalho do mesmo.
(18) Change.org. 01.04.2020. Realidade da pandemia encurrala motoboys de aplicativos de delivery. Disponível em: .
huffpostbrasil.com/entry/delivery-motoboy_br_5e83fbd8c5b6871702a699cd>. Acesso em: 20 abr. 2020.
(19) Change.org. 01.04.2020. Realidade da pandemia encurrala motoboys de aplicativos de delivery. Disponível em: .
huffpostbrasil.com/entry/delivery-motoboy_br_5e83fbd8c5b6871702a699cd>. Acesso em: 20 abr. 2020.
(20) Disponível em: .jota.info/opiniao-e-analise/artigos/acao-regressiva-previden-
ciaria-uma-realidade-09022017>. Acesso em: 26 fev. 2020.
(21) Disponível em:
tral-de-sp.shtml>. Acesso em: 26 fev. 2020.
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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os algoritmos são onipresentes na prestação de serviços por aplicativos. Nas atividades onde a ação humana é
essencial, em especial nos serviços de transporte de cargas e pessoas, a falta de visualização de um gestor humano
tem cooperado com a percepção – estruturalmente equivocada – de que o trabalhador de aplicativo tem total au-
tonomia no desenvolvimento do seu trabalho, já que não responde a ninguém – humanamente considerado. Os
trabalhadores de aplicativo têm, no cumprimento de obrigações e metas ditadas unilateralmente pelo algoritmo,
seu trabalho coordenado. Ponto. Estes algoritmos que ditam um processo de precarização do trabalho humano são
regidos por leis internas. Não há, entretanto, a preocupação com o elemento humano.
Em tempos de pandemia o trabalhador de aplicativos de entrega está completamente exposto ao risco de
contaminação pelo coronavírus, fica encurralado entre a necessidade econômica, os riscos de atividade e uma
“parceria” desigual. Neste particular, apesar do vínculo de emprego ser de difícil visualização quando o serviço é
gerenciado por um algoritmo invisível, apesar de não serem necessariamente aplicáveis as normas da CLT, é certo
que o trabalhador de aplicativo não é um sujeito desprovido de direitos. Tem direitos fundamentais, entre eles o
da dignidade da pessoa humana e de sadia qualidade de vida no meio ambiente do trabalho.
Defende-se que próprio inc. XIII, art. 7º da Constituição da República estabelece a diretriz de que todo o trabalha-
dor tem direito a uma jornada de trabalho com limite diário. O limite constitucional de 8 horas diárias deve ser obser-
vado para o trabalhador de aplicativos. Ainda como elemento de um piso vital, deve ser reconhecida a responsabilidade
do dono do algoritmo nos casos de acidentes e afastamentos do trabalhador de aplicativo, deve a plataforma assumir a
responsabilidade em garantir o direito fundamental de sadia qualidade de vida no meio ambiente do trabalho.
Bem, a odisseia do trabalhador de aplicativo, no Brasil, está longe do fim, mas espera-se que, respeitado um
piso vital mínimo de direitos, alcancemos o mesmo desfecho da saga de 2001 (o filme). Nesta odisseia, mesmo
após todos os avanços tecnológicos, mesmo após cruzar espaço e tempo, concluiu-se que é o homem quem deve
prevalecer, não o algoritmo.
7. REFERÊNCIAS
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mas de controle sobre o empregado. Jota info. 17.jun. 2019. Disponível em: all?redirect_to=//www.
jota.info/opiniao-e-analise/artigos/subordinacao-por-algoritmo-nas-relacoes-de-trabalho-17062019>. Acesso em: 2 abr. 2020.
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MELLO, Gabriela. Candidatos a entregador do ifood mais que dobram após coronavírus. Reuters. 01.04.2020. Disponível em:
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virus.htm>. Acesso em: 24 abr. 2020.
MELO, Sandro Nahmias; RODRIGUES, Karen Rosendo de Almeida Leite. Direito à desconexão do trabalho. Com análise crítica
da Reforma Trabalhista (Lei n.13.467/2017). Teletrabalho, Novas tecnologias e Dano Existencial. São Paulo: LTr, 2018.
MELO, Sandro Nahmias. Eu, algoritmo. Jota info. 13 de março de 2020. Disponível em: ywall?redirect_
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______; Meio ambiente do trabalho: direito fundamental. São Paulo: LTr, 2001.
NEDER, Vinicius. Aumento do trabalho por conta própria pode ser estrutural, relacionado a aplicativos, aponta o Ipea. O Estado
de S. Paulo. 12 de dez. de 2019. Disponível em: abalho-por-
-conta-propria-pode-ser-estrutural-relacionado-a-aplicativos-aponta-ipea,70003123328>. Acesso em: 20 fev. 2020.
SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução de João Peres. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
ROCHA, Claudio Jannotti da; MUNIZ, Mirella Karen de Carvalho Bifano. O teletrabalho à luz do artigo 6º da CLT: o acompa-
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