Evolução histórico-cultural do direito previdenciário

AutorFabiana Pedroso Paz
Páginas21-40

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Entre as conquistas e os novos direitos agregados pela sociedade ao longo dos últimos anos, destacam-se aqueles voltados à proteção social. A Seguridade Social, da qual, de acordo com os preceitos da Constituição Federal Brasileira, é espécie a Previdência Social, visa proteger e promover o bem-estar da pessoa humana, quando esta estiver exposta a contingências sociais que a impeçam de ter uma vida digna, exercendo, também, o relevante papel de instrumento de equilíbrio social. Nesse contexto, a Previdência Social tem se consagrado dentro do rol de direitos humanos e fundamentais, uma vez que visa a proporcionar aos seus segurados e dependentes a proteção individual em determinadas situações que coloquem em risco sua subsistência, buscando manter condições mínimas de igualdade.

No Brasil, com a Constituição Federal de 1988, a proteção social assumiu espaço relevante no ordenamento jurídico, pois, além de estar contemplada dentro de um capítulo próprio no Título concernente aos Direitos e Garantias Fundamentais, a Ordem Social foi dissociada da Ordem Económica, dessa forma, conferindo destaque aos direitos dessa natureza.1 Ressalta-se que a Declaração Universal dos Direitos do Homem muito contribuiu para a expansão das técnicas de seguridade social, como também para uma noção mais ampla de universalização do direito de proteção social e a consequente implicação de outorga de direitos prestacionais aos cidadãos.2 Essa intenção de priorizar a proteção social, presente desde o projeto da atual Constituição, mostrava-se forte também em países vizinhos, sendo a inclusão da seguridade social nos planos nacionais um dos postulados do VII Congresso IberoAmericano de Seguridade Social, realizado no Panamá.3

Para possibilitar uma melhor compreensão do atual modelo constitucional de Previdência Social, principalmente no que tange à sua condição de Direito Humano e Fundamental, faz-se necessária uma abordagem da evo-

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lução histórico-cultural dos direitos de proteção social, mais especificamente, dos direitos de natureza previdenciária, como também seu posterior reconhecimento legislativo na esfera internacional e, finalmente, seus contornos na atual Constituição Federal.

A evolução histórico-cultural do direito previdenciário até a segunda guerra mundial

De acordo com Russomano, a história da Previdência Social está atrelada a duas tendências inatas do homem: as ideias de poupança e de caridade. A ameaça de riscos individuais leva o homem à necessidade de amealhar meios que possam lhe assegurar o futuro. No entanto, esclarece o referido autor:

A previdência social, embora lligada, como dissemos, à ideia de poupança, não é mero sistema de acumulação de reservas para o dia de amanhã. Seu pano de fundo é o sentimento universal de solidariedade entre os homens, ante as pungentes aflições de alguns e a generosa sensibilidade de muitos.4

Pode-se considerar como antecedentes da Previdência Social5, o momento em que começaram a aparecer organizações de prestação de auxílio aos necessitados, sobrepondo-se ao conceito familiar ou individual de poupança. Na antiguidade, a proteção social concentrava-se na esfera privada, em associações com fins religiosos para a prática de assistência familiar e caridade. As primeiras experiências de ajuda recíproca, de caráter mutualista, decorreram dos chamados colégios gregos e romanos. Os primeiros, denominados de heterias, foram construídos em Atenas, por Teseu. Essas associações exerceram tamanha influência que em Roma, onde existiam sob a vigência da Lex Clodia, foram anteriormente abolidas por Júlio César, por temer sua relevância na vida do Império. Em 56 a.C., com a morte de Júlio César, Augusto proclamou a Lex Iulia, a qual estabeleceu o direito aos romanos de se associarem nos mencionados colégios.6

Na Idade Média, registra-se o surgimento das guildas7 germânicas e anglo-saxônicas, as quais possuíam os mesmos moldes dos colégios gregos e romanos, embora com nítidas finalidades profissionais, estando divididas em

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três grupos: as religiosas e sociais; as compostas por artesãos; e as formadas por mercadores. Nesse período histórico, desenvolveram-se por toda a Europa corporações de ofício, de caráter mutualista, em que os grêmios e as confrarias8 assumiram papel de destaque.9Já na Idade Moderna, como substituição aos grêmios, a proteção social se deu por intermédio das irmandades de socorro, as quais eram submetidas a uma autoridade eclesiástica, sendo posteriormente sucedidas pelos montepios. Dentre os traços dos montepios, destacam-se sua característica laica e a subvenção estatal. Eram entidades restritas a atividades profissionais que auferiam altos rendimentos, excluindo a maior parte da população.10

No final do século XVIII e no início do século XIX, com a Revolução Industrial, a sociedade atingiu um desenvolvimento económico nunca visto. Entretanto, esse processo acarretou um regime laboral cruel aos trabalhadores, que passaram a enfrentar longas jornadas de trabalho, além de gerar um aumento numérico do proletariado.11 Esse novo cenário, caracterizado por um novo modelo social, passou a exigir do Direito uma nova postura, desafiando as estruturas jurídicas da época.12

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Nesse contexto histórico, o mutualismo, a economia individual e o seguro não se mostravam mais como sistemas eficazes de proteção social, uma vez que, além de depender de iniciativa pessoal de cada indivíduo, não atingiam todas as classes trabalhadoras. Começou a surgir a necessidade da intervenção estatal na área de proteção social, visto o nítido impedimento das classes trabalhadoras de prover sua subsistência face ao advento de possíveis riscos sociais.13

No final do século XIX, registraram-se as origens dos primeiros modelos de seguridade social, sendo a Alemanha o país pioneiro na instituição de um sistema de seguros sociais. Foi o conservador Otto Von Bismarck14, o responsável pela edição de uma trilogia legislativa (Leis de 15 de junho de 1883, 6 de julho de 1884 e 22 de junho de 1889), a qual dispunha acerca de seguro-doença, seguro contra acidentes de trabalho e seguro contra a invalidez e a velhice. O modelo bismarckiano representou a gênese da proteção estatal, visto que o Estado passou a exigir contribuições compulsórias daqueles que integravam o sistema securitário, podendo o segurado exigir o pagamento do benefício em caso do advento de fato determinante. Percebe-se, nesse momento, o surgimento da prestação previdenciária como direito subjetivo do segurado.15 Nesse sentido, explicou Ibrahim:

Temos as duas grandes características dos regimes previdenciários bismarckianos: contributividade, especialmente por parte de empregados e empregadores, além de compulsoriedade de filiação, ttanto no senttido do ingresso coercitivo como pré-requisito à obtenção de benefícios.

Nesse momento, tem-se o nascimento da prestação previdenciária como direito público subjetivo do segurado. A partir do instante em

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que o Estado determina o pagamento compullsório de contribuições para o custeio de um sistema protetivo, o segurado pode exigir, a partir da ocorrência do evento determinante, o pagamento de benefício, não sendo lícito, a priori, ao estado alegar dificuldades financeiras para elidir-se a esta obrigação.16 [grifo nosso]

Apesar dos avanços obtidos pelos seguros sociais, esses ainda se mostravam insuficientes, devido ao fato de sua aplicação estar restrita a uma parcela da população, sem traços de solidariedade, características marcantes do sistema bismarckiano.

Posteriormente, foram surgindo outros modelos de seguro social. A Noruega, em 1885, criou a cobertura diante de acidentes de trabalho, o fundo especial em favor de doentes e o auxílio-funeral. Em 1891, a Dinamarca aprovou um sistema de aposentadoria e, logo depois, a Suécia desenvolveu o primeiro plano de pensão nacional universal.17

Marcos importantes da evolução securitária estão representados pela Constituição do México (1917) e pela Constituição de Weimar (1919). A Carta Política mexicana de 1917 foi a pioneira em mencionar o seguro social, reconhecendo a dimensão social dos direitos, como observou Comparato:

A importância desse precedente histórico deve ser salientada, pois na Europa a consciência de que os direitos humanos têm também uma dimensão social só veio a se afirmar após a grande guerra de 1914-1918, que encerrou de fato o longo século XIX; e nos Estados Unidos, a extensão dos direitos humanos ao campo socioeconómico ainda é llargamente contestada.188

A Constituição de Weimar, de 1919, seguiu a mesma via da Carta mexicana de 1917, trazendo vários dispositivos concernentes à Previdência. Foi no período entre as duas grandes guerras que notadamente se desenvolveram os direitos de proteção social, buscando atingir um número maior de indivíduos.

No Brasil, por influência das Constituições mexicana, de 1917, e de Weimar, de 1919, a Constituição Federal de 1934 teve papel relevante no reconhecimento dos direitos sociais no país, visto que as Cartas anteriores limitavam os instrumentos de proteção social à beneficência e à assistência pública.19

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A preocupação com os excluídos dos regimes previdenciários restou evidenciada após o empobrecimento causado pela Grande Depressão de 1929; Estados Unidos, país de forte tradição liberal, diante da fragilidade social vivenciada na época, viu-se obrigado a adotar uma nova postura, caracterizada pela intervenção no domínio econômico e social.20 Em 1932, o então presidente, Franklin Roosevelt, adotou um programa de governo denominado New Deal, o qual tinha como objetivo minimizar a situação de flagelo social existente na época através...

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