Faca, peixeira, canivete: uma análise da lei do feminicídio no Brasil

AutorCarlos Barreto Campello Roichman
CargoFundação Getúlio Vargas, Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Programa de Mestrado em Administração Pública, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Páginas357-365

Page 357

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-02592020v23n2p357

Faca, peixeira, canivete: uma análise da lei do feminicídio no Brasil

Carlos Barreto Campello Roichman1https://orcid.org/0000-0002-9328-6065

1Fundação Getúlio Vargas, Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Programa de Mestrado em Administração Pública, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Faca, peixeira, canivete: uma análise da lei do feminicídio no Brasil

Resumo: No Brasil, nos últimos anos, duas leis destacam-se no enfrentamento da violência contra a mulher: a Lei n. 11.340/2006, Lei Maria da Penha, e, mais recentemente, a Lei n. 13.104/2015, que tipifica o feminicídio, o assassinato de uma mulher em razão de sua condição de gênero. O objetivo deste artigo é analisar os efeitos da Lei n. 13.104/2015 nos índices da violência contra as mulheres, em especial no número de feminicídios. Levantou-se o número de mortes de mulheres no Brasil no período entre 1996 e 2017, para avaliar, de forma quantitativa, os efeitos da nova legislação nos números da violência de gênero, através de um comparativo na evolução temporal dos índices. Os resultados apontam um decréscimo imediato no número de feminicídios, com uma subsequente retomada de alta, indicando que não houve impacto significativo nesses índices. A importância da tipificação do crime, porém, vai além dos seus efeitos no número de mortes de mulheres.

Palavras-chave: Violência de gênero. Violência doméstica. Feminicídio.

Knife, carver, jackknife: an analysis of the femicide law in Brazil

Abstract: In Brazil, two recent laws stand out in the fight against gender violence: Law no. 11.340 / 2006, named “Maria da Penha Law”, and, more recently, Law no. 13.104 / 2015, which typifies femicide, the murder of a woman due to her gender condition. The purpose of this article is to analyze the effects of Law no. 13.104 / 2015 in the rates of violence against women, especially in the number of femicides. The number of deaths of women in Brazil in the period between 1996 and 2017 was surveyed, in order to evaluate, in a quantitative way, the effects of the new law on the numbers of gender violence, through a comparison on the temporal evolution of the indexes. The results point to an immediate decrease in the number of femicides, with a subsequent resumption of growth, indicating that there was no significant impact on these indexes. The importance of crime classification, however, goes beyond its effects on the number of deaths of women.

Keywords: Gender violence. Domestic violence. Femicide.

Recebido em 12.07.2019. Aprovado em 11.02.2019. Revisado em 03.04.2020

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R. Katál., Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 357-365, maio/ago. 2020 ISSN 1982-0259

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Carlos Barreto Campello Roichman

Introdução

Faca, peixeira, canivete. Espingarda, revólver. Socos, pontapés. Garrafa de vidro, fio elétrico, martelo, pedra, cabo de vassoura, botas, vara de pescar. Asfixia, veneno. Espancamento, empalamento. Emboscada, ataques pelas costas, tiros à queima-roupa. Cárcere privado, violência sexual, desfiguração. (BRASIL, 2015b, p. 41).

A preocupação com o combate à violência contra a mulher e, sobretudo, sua criminalização e o suporte jurídico-estatal às vítimas são fenômenos recentes (WAISELFISZ, 2015).

Em 1979, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Convenção para Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), pela qual os países signatários comprometem-se a adotar diversas medidas, incluindo (a) incorporar o princípio de igualdade entre homens e mulheres, abolindo leis discriminatórias e editando outras proibindo a discriminação contra a mulher; (b) instituir tribunais e outras instituições públicas que garantam a efetiva proteção da mulher; e (c) assegurar a eliminação de qualquer ato de discriminação contra a mulher, seja por pessoas, organizações ou empresas (UNITED NATIONS, 2019).

No Brasil, que está entre os países com maior número de homicídios femininos no mundo (WAISELFISZ, 2015), duas leis mais recentes destacam-se no enfrentamento da violência contra a mulher: a Lei n. 11.340/2006, Lei Maria da Penha, e, mais recentemente, a Lei n. 13.104/2015, que qualifica o homicídio contra a mulher por razões de sua condição de sexo, criando a figura legal do feminicídio, a dimensão mais brutal da violência de gênero.

Passados cerca de quatro anos da vigência da Lei n. 13.104/2015, faz-se relevante estudar os efeitos dessa política pública, em especial no que se refere aos índices da violência contra as mulheres. Surge daí o seguinte problema de pesquisa: como a Lei n. 13.104/2015 tem influenciado nos índices de feminicídio? O objetivo deste artigo é analisar os efeitos da Lei nos índices da violência contra as mulheres, mais especificamente no número de feminicídios.

Foram coletados dados para avaliar, de forma quantitativa, os efeitos da nova legislação nos números da violência de gênero, através de um comparativo na evolução temporal dos índices. Utilizou-se o banco de dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, atualizado até 2017. Foi formulado pedido dos dados de 2018 ao Ministério da Saúde, com base na Lei de Acesso à Informação, mas ainda não havia a consolidação dessas informações ao tempo da pesquisa.

O artigo está dividido em seis seções. Após esta introdução, faz-se uma revisão literária dos principais trabalhos e pesquisas envolvendo a violência contra a mulher e, em especial, o feminicídio. Em seguida é apresentado o percurso metodológico utilizado e depois os resultados encontrados. Passa-se, então, à discussão dos resultados da pesquisa à luz do referencial teórico adotado. Por fim, são apresentadas as considerações finais do trabalho.

Referencial Teórico

Bourdieu (2002) afirma que é comum aos dominantes a tendência a apresentar como universal sua maneira particular de ser. A naturalização do comportamento discriminatório é uma forma de manter o status de dominação sobre o discriminado.

No caso da discriminação por gênero, a violência sexual é uma forma de controle para manter o patriarcado (RADFORD, 2006). Vivemos, de fato, numa sociedade falocêntrica, que toma a lei, a sociabilidade e os padrões de masculinidade para, de forma artificiosa, justificar e naturalizar a violência baseada em comportamentos misóginos (LODETTI et al., 2018).

Segato (2016) observa que nunca houve tantas leis protegendo os direitos das mulheres, tanta literatura publicada, capacitações específicas, prêmios e reconhecimentos por conquistas no campo dos direitos femininos. No entanto, as mulheres continuam sendo assassinadas. Seus corpos nunca estiveram tão vulneráveis à violência doméstica e nunca receberam tanta intervenção médica buscando a forma de felicidade ou beleza socialmente imposta.

O feminicídio é o ápice de um continuum de diversas agressões praticadas contra a mulher, que ao longo do tempo vão sendo naturalizadas na sociedade. Não aparece como um evento isolado nos casos de violência doméstica, mas como o momento culminante de toda uma história de violência cometida contra a vítima (BRASIL, 2015a).

Em sua definição mais abrangente, o feminicídio é a morte de uma mulher pela sua condição de gênero. O termo femicide, em inglês, foi utilizado pela primeira vez no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, pela advogada Diana Russell, para qualificar o crime cometido por um homem contra uma mulher que culmina em sua morte (MENEGHEL; MARGARITES, 2017). Posteriormente, a própria Diana Russel, junta-

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mente com Jane Caputi, definiram femicide como o assassinato de mulheres cometido por homens motivados por ódio, desprezo, prazer ou por um sentimento de propriedade. É a continuação da violência, que estabelece uma conexão com diversas formas de agressão, física ou psicológica, como estupro, tortura, assédio, exploração sexual, mutilação genital, dentre muitas outras (CAPUTI; RUSSELL, 1992). Quando qualquer dessas formas de terrorismo sexista resultar na morte da mulher, tem-se um femicide. Jill Radford, por sua vez, chamou de femicide o assassinato misógino de uma mulher (RADFORD, 1992).

Em 2012, a ONU publicou a Declaração de Viena sobre Femicídio (Vienna Declaration on Femicide), reconhecendo como tal o assassinato de mulheres e meninas em razão de seu gênero, resultante de: 1) violência doméstica/violência praticada pelo parceiro íntimo; 2) tortura e misoginia contra mulheres; 3) práticas em nome da “honra”; 4) prática no contexto de conflitos armados; 5) práticas relacionadas a dotes de mulheres e meninas; 6) assassinato de mulheres e meninas por causa de sua orientação sexual e identidade de gênero; 7) práticas contra indígenas por causa de seu gênero; 8) infanticídio e feticídio por seleção sexual baseada em gênero; 9) mutilação genital; 10) acusações de feitiçaria, e 11) outras situações relacionadas a gangues, crime organizado, traficantes de drogas, tráfico de seres...

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