Fenômenos naturais versus fenômenos sociais: cuba e as lições do Katrina

AutorAugust Nimtz
CargoAugust Nimtz é professor de Ciência Política e Estudos Africanos e Afro-Americanos na Universidade de Minnesota. Seu pai e sua mãe foram evacuados de Nova Orleans para Minnesota na sequ?ência da passagem do Katrina. [animtz@polisci.umn.edu]
Páginas7-22
FENÔMENOS NATURAIS VERSUS FENÔMENOS SOCIAIS:
CUBA E AS LIÇÕES DO KATRINA
AUGUST NIMTZ *
“Se esta cidade morrer, terá sido efetivamente um resultado da passagem do Katrina”
(Oliver Thomas, presidente da Câmara de Vereadores
de Nova Orleans, dois dias após o furacão)
“Estamos testemunhando a pior crise de saúde a afetar as crianças
na moderna história norte-americana se desenrolando através da área do golfo”
(Op-ed, New York Times, Nova York, 9 de maio de 2006)
“Achava que poderia sobreviver à tempestade e sobrevivi,
o que acontece agora é que está me matando”
(um morador de Nova Orleans, New York Times, Nova York, 21 de Junho de 2006)
1. INTRODUÇÃO
A comoção em torno das observações feitas por Ray Nagin, o prefeito da
“cidade chocolate”, durante a celebração do aniversário de Martin Luther King
Júnior, em Nova Orleans, acabou obscurecendo um comentário
particularmente insidioso feito por aquela autoridade inabalável. De acordo
com Nagin, a morte e a destruição trazidas pelo Furacão Katrina significam que
“Deus, certamente, está contrariado com a América Negra”. Como
demonstração desta manifestação de sabedoria, Nagin mencionou uma bem
conhecida litania de males que os negros têm, supostamente, infligido a si
mesmos – crianças nascendo fora do casamento, crimes de negros contra
negros, uso de drogas etc.
Seria difícil recuperar uma declaração mais racista realizada por uma
autoridade pública na história recente dos Estados Unidos. A ausência de
indignação por parte dos autodenominados porta-vozes da América Negra e a
atenção que o comentário recebeu da grande imprensa são também
reveladores. Raramente um pronunciamento público, e os eventos que o
provocaram, deixaram tão clara a necessidade de uma análise científica da
realidade social, não obstante os protestos dos pós-modernistas.
Para efeito de explicação do que efetivamente aconteceu em Nova Orleans e
adjacências, tomemos em consideração uma localidade situada a algumas
centenas de milhas ao Sul, também ameaçada pelos furacões: a ilha de Cuba.
Um relatório editado pela Oxfam América em 2004, intitulado Cuba
sobrevivendo à tempestade: as lições cubanas sobre a redução de riscos,
detalha como o governo comunista da ilha, com muito menos recursos do que
o seu vizinho temente a Deus do Norte, obteve muito mais sucesso na
proteção das vidas de seus cidadãos quando atingida pela tempestade. Como
afirmam os autores no sumário da publicação,
as realizações cubanas na redução dos riscos emanam de um
impressionante processo multidimensional. O seu fundamento é um
modelo sócio-econômico que reduz a vulnerabilidade e investe no
capital social através do acesso universal aos serviços governamentais
e da promoção da igualdade social. Os níveis elevados de alfabetização,
desenvolvimento de infra-estrutura nas áreas rurais e acesso a um
sistema eficiente de saúde daí resultantes desempenham uma função
capital na produção de “efeitos multiplicadores” para os esforços
nacionais de mitigação, preparação e resposta aos desastres naturais.
(...) No âmbito nacional, a legislação cubana sobre desastres naturais,
os programas educacionais sobre desastres naturais no sistema público
de educação, a investigação meteorológica, o sistema de alerta
preliminar, um sistema efetivo para a comunicação de desastres, um
plano de emergência abrangente e a estrutura da Defesa Civil são
recursos importantes na prevenção dos desastres naturais. A estrutura
da Defesa Civil depende da mobilização da comunidade ao nível das
pessoas comuns sob a liderança das autoridades locais, da ampla
participação da população na montagem dos mecanismos de
preparação e resposta e do capital social acumulado. (...) Tanto o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP) quanto a
Federação Internacional da Cruz Vermelha e das Sociedades do
Crescente Vermelho (IFRC) têm repetidamente apontado Cuba como
um exemplo a ser emulado por outros países em matéria de redução de
riscos (Thompson e Gaviria, 2004)
No próprio texto do relatório, os autores deixam muito claro o que eles
entendem por “realizações cubanas”: “durante os sete anos situados entre
1996 e 2002, seis grandes furacões atingiram Cuba, mas apenas um total de
16 pessoas morreram”. O que é notável neste relatório é que ele foi escrito um
ano antes que a ilha fosse atingida pelos dois furacões mais poderosos de sua
história: Ivan, uma tempestade de categoria cinco, em 2004, e Dennis, uma
tempestade de categoria quatro, em 2005. Quase milagrosamente nem um
cubano faleceu na passagem do Ivan. E, em relação a Dennis, que precedeu o
Katrina em cerca de dois meses e possuía a mesma intensidade quando
alcançou a ilha, somente quinze cubanos perderam suas vidas. Isto contrasta
em termos agudos com o que aconteceu na costa do Golfo dos Estados
Unidos. A pergunta é: por quê?
Mais especificamente, o que explica que um país subdesenvolvido,
incessantemente acusado por seus detratores de se encontrar sob a ditadura
de Fidel Castro, consegue realizar melhor a tarefa de salvar as vidas de seus
cidadãos quando atingido por um fenômeno natural como um furacão do que o
mais rico e supostamente – de acordo com sua própria auto-avaliação – mais
liberal e democrático dos regimes existentes no planeta? Como os
acontecimentos de Nova Orleans e adjacências demonstraram tragicamente,
não se trata de uma questão de mero interesse acadêmico, mas sim de vida
ou morte.
2. ANTES E DEPOIS DA REVOLUÇÃO
Uma conhecida anedota sobre a forma como os cubanos narram sua própria
trajetória diz respeito ao uso constante da frase “antes da Revolução”. As boas
anedotas são aquelas informadas por algum elemento de verdade. Quando se
trata de furacões em Cuba, as definições temporais costumam dizer alguma

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