"Estar internada é ficar o dia todo presa": o cotidiano no falatório autobiográfico de Stela do Patrocínio

AutorViviane Trindade Borges
CargoMestre e Doutora em História pela UFRGS, professora do epartamento de História da UDESC.
Páginas139-150

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Viviane Trindade Borges1

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Eu sou Stela do Patrocínio Bem patrocinada Estou sentada numa cadeira Pegada numa mesa nega preta e crioula Eu sou nega preta e crioula

Nega, preta e crioula, assim se definia Stela do Patrocínio. A personagem foi internada pela primeira vez em 1962, no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, aos 21 anos, sob o diagnóstico de "personalidade psicopática mais esquizofrenia hebefrenica, evoluindo sob reações psicóticas". Foi transferida em 1966 para a Colônia Juliano Moreira. Nesta última instituição Stela permaneceu por quase trinta anos, sem receber uma única visita. Morreu em 1992, devido a uma infecção generalizada, contraída após a amputação de uma de suas pernas em virtude de uma hiperglicemia grave. Apesar dos esforços realizados pela instituição, seus parentes nunca foram localizados.

A idéia de escrever um artigo a respeito de Stela do Patrocínio surgiu em 2006, em função de uma pesquisa realizada na Colônia Juliano Moreira2. Lá, foi possível conhecer os ditos de Stela, presentes na biblioteca que leva seu nome, dentro do espaço institucional. O presente estudo busca problematizar a maneira como a personagem desenhou o cotidiano asilar, entrelaçando este a sua memória autobiográfica. Perpassando alguns temas recorrentes em sua fala, é possível perceber a instituição de determinada visão a respeito dos 30 anos de internamento na Colônia Juliano Moreira.

A exemplo das muitas histórias anônimas que atravessaram os manicômios através dos séculos, pouco se sabe a respeito de Stela. Ela teria nascido em 9 de janeiro de 1941, filha de Manoel do Patrocínio e Zilda Xavier do Patrocínio, contava que era solteira:

doméstica, de instrução secundária. Que morava (o que não foi confirmado) na Rua Maria Eugenia 50, apto 501, Botafogo. Que tinha como familiar responsável o sobrinho, Reinaldo do Patrocínio, cujo endereço, Estrada da Gávea 460, Rocinha, não pode ser confirmado. Que este sobrinho a visitou um tempo e depois desapareceu. Que dizia ter duas irmãs, Ruth e Olívia, já falecidas, e um cunhado, marido de Olívia e pai de três sobrinhos: Reinaldo, Cosme e Eduardo. Que a mãe já foi interna do Núcleo Teixeira Brandão e conseguiu sair antes que ela desse entrada naquele hospital. Que era domestica na Urca, na mesma casa em que a mãe enlouqueceu3

Os dados biográficos lacunares e imprecisos não foram confirmados por Stela. O que dela permaneceu foi seu falatório, preenchido por uma vitalidade e força intensas. O falatório de Stela foi transcrito a partir de gravações

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realizadas entre 1986 e 1989, por iniciativa de voluntários, como a artista plástica Neli Gutmacher, na época professora da Escola de Artes Visuais do Parque da Lage, que a convite da psicóloga Denise Corrêa, montou um ateliê dentro da Colônia Juliano Moreira. A idéia de gravar a fala de Stella ocorreu em virtude das preferências da própria personagem, a qual optava usar a fala para se expressar ou invés de desenhos:

Apesar de freqüentar o ateliê, raramente utilizava os materiais propostos. Quando desenhava, o que era raro, eram coisas quase minimalistas, expressões pequenas, muito próximas à escrita. Algumas vezes escrevia em papelão,frases ou números. Mas o que realmente diferenciou Stela no grupo foi a sua fala. Ao contrário das outras internas, que aceitavam se relacionar com tinta e papéis, ela preferia a palavra. E parecia ter clareza desta preferência. Em sua fala desconcertante, incisiva, cada sílaba era pronunciada com gosto4.

Sua voz extravasou o espaço institucional em 1988, na exposição intitulada "Ar subterrâneo", realizada no Paço Imperial no Rio de Janeiro. Na mostra, trechos de sua fala foram transcritos em pedaços de papelão. A partir deste trabalho o músico Cabelo passou a utilizar fragmentos de seus textos nos shows do grupo Boato.

Em 2001 seus textos foram adaptados para o teatro na peça "Stela do Patrocínio óculos, vestido azul, sapato preto, bolsa branca e ... doida". Neste mesmo ano a fala de Stela virou livro, "Stela do Patrocínio – Reino dos bichos e dos animais é meu nome", organizado pela socióloga Viviane Mosé (2001)5. Nele encontramse transcritos parte do material gravado pelo ateliê, ou seja, Stela e seu falatório, o qual serve de fonte para o presente estudo.

As gravações permitiram que a personagem encontrasse uma escuta:

Tenho muito assunto muito falatório Não encontro ninguém para quem eu possa conversar Quando não tenho uma voz mais Não tenho falatório Uma voz mais E querem conversar conversar

Cabe salientar que a fala de Stela foi transformada em escrita. Assim, não foi ela quem escreveu os textos aqui citados e jamais saberemos como teria os escrito. Estes foram transcritos e selecionados por Viviane Mosé, organizadora do referido livro, em função da conexão e encadeamento de assunto estabelecido entre eles. Transpor a fala para a escrita não é reproduzir o que foi dito, pois a

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escrita não consegue apreender a fala em sua musicalidade e minúcias próprias. Assim, os textos transcritos resignificam a fala de Stela, instituem um hiato intransponível que não nos permite chegar a sua fala, mas somente a um possível efeito daquilo que Stela quis dizer. Ciente de tais limitações pretendese aqui percorrer o falatório de Stela.

O cotidiano da colônia juliano moreira no falatório de stela

A vida cotidiana é aqui pensada uma maneira de existir na qual o sujeito estabelece relações conforme suas possibilidades de ação6. O cotidiano descrito no falatório de Stela não é aqui percebido como um simples pano de fundo, ou cenário pronto onde atuou a personagem em questão, mas como limite e origem de sua construção autobiográfica. Problematizando as imagens por ela instituídas a respeito da instituição na qual viveu, pretendese vislumbrar o mosaico de sentidos por ela cuidadosamente elaborados, o qual desenha as práticas psiquiátricas nas décadas de 60, 70 e início dos anos 80, imbricadas no cotidiano de um nosocômio localizado no Rio de janeiro.

Conforme Petersen7:

a preocupação de incorporar ao trabalho do historiador a perspectiva do cotidiano significa um enriquecimento analítico indiscutível, já que a presença desta dimensão universal em todo o modo de existência humana certamente...

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