Ficha limpa: a moralidade administrativa revigorada pela democracia

AutorDaniel Castro Gomes da Costa - Tarcisio Vieira de Carvalho Neto
Páginas193-216

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1. Noções propedêuticas e contextualização do tema

A Lei Complementar nº 135/101, mais bem conhecida como Lei da Ficha Limpa, é, por assim dizer, um tapa, com luva de pelica, no rosto daqueles que acreditavam falida a fórmula da democracia e, mais precisamente, as modelagens das democracias diretas e representativas.

O processo democrático que redundou na sua vinda à baila, de firme e decisiva participação popular, fez despertar, de um sono profundo, a consciência cívica necessária a um defiagrar de novos rumos civilizatórios, próprios da edificação de uma cena político-administrativa daqui por diante mais comprometida com a ética e com legítimos valores republicanos.

É fato que as leis eleitorais dizem com um segmento bastante conservador do Direito Público. E assim é porque aqueles que se elegeram mercê de leis eleitorais desgastadas e bolorentas não têm real interesse de mudança. Ao mesmo tempo, os que não foram eleitos, embora tenham desejo de mudança, não dispõem de meios materiais de promoção de significativas alterações políticas.

Por conseguinte, as leis eleitorais tendem, naturalmente, a mudar muito pouco ou quase nada de significativo e, quando mudam, o fazem para a simples reversão de um pico provisório de insatisfação social e em escala suficiente à simples anestesia da ânsia popular de mudanças.

Com a LC nº 135/10, tudo foi bem diferente. Rompendo-se uma forte tradição de inação legislativa, no trato do tema eleitoral, foram empreendi-

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das profundas transformações na vida política nacional. De tão insuportável a cena política de desmandos e malversações de dinheiros públicos, o indignado cidadão partiu para a ofensiva, forçando o Congresso Nacional, contra a vontade política de numerosos e infiuentes parlamentares, a realizar uma revolução democrática muito mais abrangente do que foi verbalizada ou num primeiro momento propagandeada.

A relevância social da novel legislação, além de constranger, positivamente, o Congresso Nacional, que, inusitadamente emparedado, consentiu e se conformou com a sede social de mudanças, percorreu a Praça dos Três Poderes e se assenhorou, virtuosamente, como numa avalanche, das mentes da maioria dos membros do Supremo Tribunal Federal, que, muito embora, tenham num primeiro momento, em decisão marcadamente técnica, afastado a possibilidade de aplicação da novel legislação ao pleito de 2010, por força do Princípio da Anterioridade Eleitoral, esculpido no art. 16, da Constituição Federal, veio de validar, para as eleições municipais de 2012, sob o prisma constitucional, a totalidade de seu conteúdo e de dar sinal verde para a abertura de comportas democráticas revolucionárias, inclusive para a Administração Pública.

Mesmo que se possa dizer que a (mais recente) decisão empreendida pelo Supremo Tribunal Federal tenha acabado por eclipsar uma maior e mais verticalizada discussão sobre o alcance e os pormenores da benfazeja legislação, forçoso convir que alguns meandros dos complexos e relevantes temas nela versados remanescem inexplorados, sobretudo pelo prisma científico, havendo espaços para investigações doutrinárias e incursões jurisprudenciais.

Paralelamente a isso, percebe-se uma irrefreável irradiação dos seus postulados moralizadores não só na estruturação de partidos políticos e candidaturas, mas também na recomposição dos quadros de pessoal da Administração Pública, dos três Poderes e em todos os níveis da Federação, promovendo-se uma idolatrada reconciliação, ou melhor, uma convergência de interesses do titular do poder, a saber, o povo, e de seus representantes, eleitos ou não, responsáveis, em maior ou menor grau, pelo trato da coisa pública, tudo nos termos do parágrafo único, do art. , da atual Constituição da República2.

O presente trabalho não ambiciona ferir a legislação pelo prisma eleitoral propriamente dito, tarefa a ser empreendida no Direito Eleitoral Constitucio-

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nal e pelos eleitoralistas3, mas sim anunciar algumas salutares mudanças de rumos, perceptíveis no palco administrativo do país, derivadas da notável força motriz transformadora emanada da Lei Complementar nº 135/10. Intenciona-se, tão só, realçar o efeito propulsor do conteúdo ético das novas hipóteses de inelegibilidades sobre as instâncias da Administração Pública, mormente a partir da constatação de que a nobre carga democrática depositada na Lei Complementar nº 135/10, desde o seu nascedouro, acabou por revigorar, intensamente, a moralidade administrativa brasileira, com resgate de sua credibilidade.

2. Fecundação, gestação e nascimento de um símbolo da nova democracia: a Lei Complementar nº 135/2013

As inovações vertidas no cenário político atual, pela Lei Complementar nº 135, de 2010, são representativas de significativo avanço democrático.

Não obstante isso, o olhar do cidadão de bem, ainda que respeitoso e aguçado, apenas sobre o resultado das novéis restrições legislativas a candidaturas políticas de corruptos, inaptos e incompetentes, não pode encobrir e relegar ao injusto esquecimento a rica marcha empreendida pela lei, desde o seu nascedouro, na mais pura e legítima iniciativa popular4.

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A LC nº 135/10, como bem assinala Marlon Reis5, representa uma conquista da sociedade brasileira. Na esteira da Lei nº 9.840/99, que culminou na introdução no art. 41-A, na Lei nº 9.5046, ela coroa um processo de mobilização social sem precedentes na história política nacional.

Tem origem em 2007, quando o "Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral" houve por bem defiagrar a "Campanha Ficha Limpa", com a finalidade precípua de dar resposta a uma crescente demanda social por aumento de rigor quanto a requisitos para candidaturas a cargos políticos7.

Segundo o autor acima referido, a coleta de assinaturas teve início em maio de 2008, após a aprovação da campanha pela unanimidade dos presentes à Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, uma das entidades integrantes do Movimento. A partir daí, todas as demais organizações engajadas foram convidadas a refietir sobre o tema e difundi-lo entre suas bases, de modo a alcançar-se a mobilização em rede necessária à geração da "energia política" de que dependeria a conquista das 1,3 milhão (hum milhão e trezentas mil) de assinaturas necessárias à apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular8.

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De acordo com o mesmo pesquisador, com o término da coleta de assinaturas em meio físico9- uma atávica exigência da Lei nº 9.709/98 - teve início uma vultosa mobilização pelas redes sociais da internet. E logo se multiplicaram redes sociais e perfis no microblog Twiter dedicados ao tema, sendo certo que apenas um dos grupos no Facebook (2010: Todos pela Ficha Limpa) superou a marca dos 17 mil participantes.

O projeto passou a tramitar, efetivamente, a partir de março de 2010, tendo sido constituído grupo de trabalho na Câmara dos Deputados para debater a matéria a trilhar o consenso necessário para aprovação.

Com algumas alterações, bem toleradas pelas entidades que participaram ativamente das atividades do grupo parlamentar, para facilitar a aprovação da matéria, o projeto foi submetido ao descortino do Plenário da Câmara, onde inspirou vivo debate. Seguiu depois para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania com o formal compromisso dos líderes partidários de que caso o debate não fosse encerrado em tempo hábil, a matéria seguiria diretamente para deliberação em Plenário, o que veio a acontecer efetivamente.

O texto base do projeto foi aprovado por larga maioria em Plenário, mas, antes que a proposta seguisse para o Senado, foi necessário votar e rechaçar, um a um, inúmeros destaques que ameaçavam desfigurar o conteúdo firme e inovador das mudanças. No Senado, o projeto foi incluído para votação, em maio de 2010, com apenas uma emenda de redação, por meio da qual se ambicionava alterar o tempo verbal das hipóteses de inelegibilidade, o que despertou grande apreensão, para não dizer generalizada desconfiança, quanto à abrangência e ao alcance retrospectivo da futura lei.

Sancionado em 04 de junho, pelo Presidente Lula, o projeto de lei de iniciativa popular convolou-se na Lei Complementar nº 135, publicada no Diário Oficial de 07 de junho de 2010. E o Tribunal Superior Eleitoral, em resposta a Consul-tas formuladas, reconheceu a aplicabilidade da Lei da Ficha Limpa às eleições de 2010, inclusive quanto a fatos geradores pretéritos. Todavia, o Supremo Tribunal

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Federal10, por maioria de votos, invocando o art. 16, da Constituição Federal, como afirmado alhures, em decisão marcadamente técnica, afastou a aplicação da Lei às eleições 2010. Posteriormente, como será demonstrado no tópico seguinte, afastado o óbice da anterioridade da lei eleitoral, declarou a lei constitucional e autorizou, com isso, sua aplicação ao pleito eleitoral que se avizinha.

Tem-se, então, que, gestada no seio da sociedade e arrancada como que a fórceps de um até então letárgico Parlamento, nem sempre politicamente interessado em mudanças que tais, a Lei Complementar nº 135, a julgar por sua rica trajetória de conquistas e avanços democráticos, goza, merecidamente, de respeitabilidade ímpar no cenário social11.

3. As decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a aplicabilidade da Lei Complementar nº 135/2010

Um ano e oito meses após a sua publicação, no Diário Oficial, a Lei Complementar nº 135/10, símbolo de uma viva...

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