Uma leitura filosófica de termos chineses utilizados no I Ching

AutorJorge Vulibrun
Páginas37-66

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Introdução

Neste artigo* pretendemos mostrar como a grande diferença existente entre a língua chinesa e as que formam o tronco indo-europeu afetam nossa compreensão dos textos fundamentais daquela cultura, levando-nos até o extremo de considerá-los desprovidos de nível filosófico. Isso decorre da tendência a traduzir alguns termos chave de forma tal que refletem mais nossas idéias preconcebidas sobre a China do que seu real pensamento. Perdemos assim uma visão adequada sobre a efetiva profundidade daquela cultura, que tanta influência teve em todo o Extremo Oriente.

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Por outro lado, quando consideramos a filosofia uma forma de pensar particular do Ocidente, reduzimo-la a uma simples técnica , cuja morte já foi anunciada no século XX, e a afastamos cada vez mais de seu significado inicial de “amor à sabedoria”. Obviamente, não podemos negar que esse amor tem-se manifestado muito, ao longo dos trinta séculos contínuos do pensamento chinês, fato não igualado por nenhuma cultura ocidental. Assim, desde essa definição ampla, ou, se preferimos, desde uma definição um pouco mais precisa como a de Wilfrid Sellars (1962, p.37): “O objetivo da filosofia é entender como as coisas, no sentido mais amplo do termo, se relacionam entre si, no sentido mais amplo do termo”, podemos catalogar sem receio o pensamento chinês como filosófico, apesar de existir uma diferença fundamental nas intenções dessas duas culturas.

Por um lado, o Ocidente, desde Platão, sentiu aversão às mudanças e aos câmbios e colocou-se um objetivo: descobrir (tirando mais véus do que Salomé) uma Verdade Eterna escondida por trás das aparências. Essa caçada deu origem a um sem-número de sistemas (ou devemos assumir que são só técnicas?) de pensamento, nenhum dos quais parece estar mais próximo da meta do que os outros e, pior, a própria escolha entre um ou outro parece se dever mais a preferências pessoais do que à rigorosidade de suas conclusões (anátema!). Aos poucos, no Ocidente o nome filosofia foi se referindo cada vez mais a essa caçada e cada vez menos à sabedoria. Por outro lado, na China, onde habita um povo fundamentalmente agrícola, o pensamento foi profundamente influenciado pelos ciclos da natureza, em que o único constante é “num dia chove e em outro dia faz sol”. Assim, lidar com câmbios e mudanças forma a base da sua forma de pensar, tanto que Yi Jing (ou I Ching ), o nome do texto fundamental dessa cultura, significa Tratado das mudanças . De modo ingênuo, podemos dizer que o chinês é uma forma possível que o pensamento grego poderia ter tomado, caso Heráclito tivesse se imposto sobre Parmênides ou caso Platão não tivesse sentido uma necessidade imperiosa de procurar algo firme onde se aferrar, como resultado da frustração ateniense pelo declínio de sua cidade após a Guerra do Peloponeso.

Podemos acrescentar que não deixa de ser irônico que a procura de um fundamento imutável persista numa sociedade dinâmica, como a ocidental, enquanto a aceitação da mutabilidade básica das coisas manifeste-se no meio de uma sociedade fortemente conservadora, como a chinesa. 2

A visão predominante que possuímos sobre a China está fortemente influenciada pelo fato de que seu contato inicial com o Ocidente se deuPage 39num momento de forte expansão imperialista européia (tanto no campo das idéias quanto no da política), o que é interpretado por nós como sintoma de superioridade. Esse contato coincidiu com um momento de grande crise na China, onde a decadência da reinante dinastia Manchu provocou enfrentamentos e guerras civis que esgotaram o país, incapacitandoo para enfrentar o desafio de lidar com a invasão ocidental, o que é interpretado por nós como sintoma de inferioridade.

Atualmente existe no Ocidente, sobretudo nos Estados Unidos, renovado interesse pelo estudo da cultura chinesa, incentivado, certamente, pelo sucesso com que a China está se recuperando econômica e culturalmente da fase negativa que caracterizou o século XIX e as lutas fratricidas do século XX. Esses estudos permitem resgatar o pensamento de uma sociedade que, por várias razões, pode ensinar a lidar com alguns dos problemas específicos que a cultura ocidental enfrenta. Podemos destacar dois aspectos característicos do pensamento chinês, que têm particular valor para o Ocidente atual: seu pragmatismo e a qualidade de sua relação com a natureza.

O presente trabalho está inserido em um projeto mais ambicioso de tradução para o português do Yi Jing (I Ching), cujo surgimento remonta a 3000 anos atrás.

A língua chinesa

Uma cultura está profundamente influenciada por sua língua e viceversa. Devemos expressar em palavras o que pensamos, e com elas sincronizamos nossa conduta com a de nossos vizinhos. Como povo, somos o que podemos dizer, e nossa fala nos forma como povo. Como podemos compreender então uma cultura com a qual não temos relação lingüística? O chinês nos é totalmente alheio, porque se desenvolveu fora do tronco indo-europeu, mas nem por isso podemos desvalorizá-lo, já que foi o núcleo de uma forte influência civilizadora tanto no Japão e na Coréia (que ainda hoje adotam a escrita chinesa) quanto no Vietnã e no Tibete.

Quando pensamos no enorme território ocupado hoje pela China, tendemos a esquecer que ele tem uma característica marcante: está isolado. Ao leste, está o Mar da China, barreira difícil de se transpor para um povo camponês, ao oeste, há o Himalaia e os desertos da Ásia Central, ao norte, a tundra gelada da Sibéria e, ao sul, os grandes rios que descem do Himalaia e a mata densa da Indochina. É por isso que o país se chama zhöng guó , ou seja, país do centro ou, como se costumava traduzir, Império do Meio. Essa região tem sido habitada permanentemente desde mais de um milhão de anos atrás e seu isolamento contribuiu para o desenvolvimento dos rasgos raciais típicos do que agora chamamos raça amarela.

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Os restos do Homem de Beijing, de 500.000 anos atrás, confirmam que já então eles dominavam o fogo, utilizavam ferramentas sofisticadas e se estabeleciam em assentamentos fixos. Os povoados das margens do Rio Amarelo, no norte da China, já desde o IV ou V milênio a.C. possuíam culturas muito desenvolvidas que culminaram, no segundo milênio a.C., com a instauração da primeira dinastia chinesa, os Shang, quando a língua, a escrita e a organização política já apresentavam os traços característicos daquele povo.

A língua chinesa 3 pertence à família sino-tibetana. O chinês, principalmente o clássico, apresenta características particulares: não declina por gênero, tempo ou número e as palavras podem cumprir, em função do contexto no qual são usadas, tanto funções verbais quanto de nome, adjetivo etc. Para facilitar a compreensão, as relações gramaticais são indicadas sobretudo pela ordem das palavras, que segue regras bem definidas, e pelo emprego de palavras auxiliares, que sugerem o tempo verbal, dentre outras coisas. Para agravar o problema, o chinês clássico carecia de signos de pontuação, o que tornava muitas vezes difícil dividir um texto em frases e determinar, por exemplo, de quem está se falando (isso não é o resultado de desconhecimento da língua, já que sinólogos importantes discordam sobre aspectos básicos de um texto). Assim, a língua não é apropriada para fazer uma exposição na forma de um argumento racional, mas tem a ginga que só a poesia outorga. Desse modo, os textos clássicos chineses não podem ser “traduzidos”, eles só podem ser “interpretados”. Assim, são distorcidos pelos intérpretes, sejam eles alemães, franceses, brasileiros ou, inclusive, chineses contemporâneos (lembremos a máxima italiana “tradutore, traditore”), o que remete à Babel bíblica. Tudo isso posto, vemos que resulta difícil o entendimento entre as tradições textuais chinesa e ocidentais 4 .

O fato de uma sentença chinesa não exigir sujeito nem predicado, embora eles possam ser encontrados, é extremamente importante. Em muitas ocasiões, estando o sujeito claro no contexto, ele é omitido, outras vezes, o sujeito simplesmente inexiste. A possibilidade de dispensar o sujeito, no chinês, torna mais fácil imaginar o cosmo como um processo em perpétua transição, sem necessidade de postular um agente externo que intervenha para controlar esse processo 5 . Essa característica lingüística influenciou profundamente a cosmologia chinesa.

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A língua chinesa é predominantemente normativa: sua função é coordenar as condutas dos indivíduos que formam a sociedade . Isso a diferencia das línguas ocidentais, cuja função principal é descrever uma realidade subjacente por trás das aparências.

A língua chinesa clássica está formada por palavras monossilábicas, e existem, aproximadamente, 420 sílabas possíveis, pronunciadas com quatro tons diferentes. Considerando-se que a língua tem muito mais do que 40.000 palavras, existe enorme quantidade de homófonos, que só se distinguem pela sua grafia diferente. Por isso dizemos que o chinês é, primordialmente, uma língua escrita, enquanto as línguas indo-européias são primordialmente fonéticas ou fonocentristas. Para os chineses, a escrita nunca foi considerada a fixação da fala, e a língua necessita do signo escrito para ser compreendida 6 .

O chinês é escrito com símbolos chamados caracteres. Os caracteres não são representações fonéticas, e sim ideogramas. Cada um deles consiste em certo número de traços escritos numa ordem determinada e projetados de modo a se inscrever num espaço quadrado imaginário. É preciso aprender a reconhecer a forma de cada um deles, individualmente, e a escrever os traços que os constituem da maneira e na ordem adequadas. As palavras escritas estão divididas em dois sinais: um, chamado de radical (dos quais existem 214), classifica a palavra dentro de...

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