Trabalho Forçado no Brasil: o Difícil Percurso entre o Reconhecimento e a Ruptura

AutorKátia Magalhães Arruda
Páginas376-381

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Introdução

Há cerca de vinte anos, quando tratei pela primeira vez do tema "trabalho análogo à condição de escravo"1, preocupou-me o fato de o século XXI encontrar o mundo emaranhado de contradições. A evolução da informática, o uso de circuitos internacionais de informação, a internet, clonagem, reprodução de células, estão a conviver com chagas históricas arcaicas, que persistem através dos tempos.

Ao lado de toda essa revolução tecnológica que nos causa espanto, outra realidade nada moderna nos assusta ainda mais: a existência em várias partes do mundo de trabalhadores subjugados, deteriorados física e moralmente, vendendo toda a sua força de trabalho apenas pelo retorno de migalhas de alimentação que os manterão vivos por parcos anos, sem direito a nenhum dos lemas que vêm iluminando todas as campanhas políticas mundiais desde a Revolução Francesa. São trabalhadores sem liberdade, sem igualdade e muito menos fraternidade.

Os relatos são múltiplos e atingem o Brasil de ponta a ponta: as usinas de cana-de-açúcar de Pernambuco, as carvoarias de Minas Gerais, as madeireiras do Pará e Amazonas, os imigrantes das indústrias têxteis em São Paulo, expondo, de maneira contundente, a agressão feita ao princípio basilar dos direitos fundamentais: o princípio da dignidade da pessoa humana.

2. O reconhecimento da existência do trabalho análogo à condição de escravo

No Brasil, as primeiras denúncias de formas contemporâneas de escravidão foram feitas em 1971, por Dom Pedro Casaldáliga2, bispo católico e grande defensor dos direitos humanos na Amazônia. Sete anos depois, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) denunciou fazendas, ligadas a multinacionais, no sul do Pará, que cometiam esse crime. O regime militar sempre negou a existência de trabalho forçado e o momento político dificultava qualquer expressão de pensamento, como bem narra Figueira3:

Raramente havia inquéritos policiais e, algumas vezes, a própria polícia do estado se envolvia, favorecendo empregadores, e os Procuradores e o Poder Judiciário eram omissos. As vítimas, que procuravam os sindicatos dos trabalhadores rurais, eram encaminhadas aos agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) ou das equipes locais da Igreja Católica, que não tinham muitas opções. As autoridades civis e militares não demonstravam sensibilidade; a imprensa, além de geograficamente distante da área dos crimes, em geral não reservava espaço para este tipo de notícias e os agentes pastorais sofriam suspeição. Eram considerados comunistas ou terroristas. Os agentes pastorais colhiam declarações daqueles que haviam escapado dos empreendimentos agropecuários ou de seus parentes. Em certas circunstâncias, para garantir a fé pública do documento e a vida dos informantes, os agentes pastorais levavam os trabalhadores aos Cartórios

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mais próximos onde faziam uma Declaração com os dados que tinham. Se estivessem longe do município onde o crime foi realizado, o faziam em Delegacias de Polícia.

Fato que ganhou projeção internacional foi o caso de José Pereira e "Paraná", dois peões que fugiram de uma fazenda no Sul do Pará arrastando-se pelas matas, e que, após perseguidos, foram alvos de tiros, que culminou na cegueira do primeiro e na morte do segundo4. Desde 1985, casos de escravidão contemporânea foram enviados à Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Diversas matérias jornalísticas, a exemplo da intitulada "Trabalha, escravo!", publicada em revista de circulação nacional5 divulgaram, à época, graves denúncias sobre casos de escravidão por dívidas em trabalho de desmatamento, produção de carvão (Minas Gerais e Bahia) e nas regiões de seringais e garimpos, com trabalhadores gastando sua força de trabalho unicamente para pagar dívidas feitas com os patrões através de estratégias fraudulentas e que incluíam a venda de alimentos com preços superfaturados e a perpetuação de dívidas, já que o trabalho era prestado tão somente para possibilitar a alimentação básica, vendida pelos patrões por preços extorsivos, que transformavam o crédito salarial em eterno débito do trabalhador.

Em 19956, o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, assumiu no plano internacional a existência no país de trabalho análogo à de escravo e declarou:

Em 1888, a Princesa Isabel assinou a famosa Lei Áurea, que deveria ter acabado com o trabalho escravo no País. Digo deveria porque, infelizmente, não acabou. Ainda existem brasileiros que trabalham sem liberdade. Só que, antigamente, os escravos tinham um senhor. Os escravos do Brasil moderno trocam de dono e nunca sabem o que os espera no dia seguinte. É sobre essa triste realidade que eu quero conversar com você hoje.

As denúncias sobre o assunto são muitas. Mas é preciso deixar bem claro o que é trabalho escravo. Trabalho escravo é aquele que tira a liberdade de ir e vir do trabalhador. Isso acontece principalmente no sul do Pará.

Em fazendas que fazem desmatamento, por exemplo, o trabalhador escravo é vigiado 24 horas por dia, por jagunços muito bem armados. Além disso, é obrigado a comprar do dono da fazenda tudo o que precisa para sobreviver. Na maioria das vezes, não sabe nem o preço dos produtos que compra.

Aí o que acontece é o seguinte: a dívida dele vai aumentando, não recebe mais no fim do mês e é obrigado a continuar trabalhando para pagar a dívida.

Em 2003, outro Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, lançou o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, fruto das aspirações de todas as instituições ligadas aos direitos humanos, criando a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), com o objetivo de acompanhar o cumprimento das 76 metas estabelecidas7. Um ano depois, houve a confissão de que, segundo pesquisa da Comissão Pastoral da Terra, o Brasil teria, pelo menos, 25 mil pessoas em trabalho forçado.

Em 2006, a OIT publicou extenso relatório intitulado Trabalho escravo no Brasil do século XXI, reconhecendo o avanço do País na busca de soluções para a questão e citando importantes iniciativas, como o lançamento das "listas sujas", relação de empresas cujos proprietários estão proibidos de receber recursos governamentais. Com a campanha nacional, o número de trabalhadores resgatados da escravidão aumentou, superando a marca de 10 mil pessoas; as condenações também aumentaram, bem como as multas aplicadas aos infratores. Um dos avanços mais importantes foi a assinatura de um compromisso público pelo qual diversas empresas do ramo siderúrgico, na região de Carajás, no Pará, e Sul do Maranhão comprometeram-se a não mais comprar carvão vegetal de empresas que comprovadamente utilizassem mão de obra escrava. Tal compromisso teve como testemunhas a OIT, o Tribunal Superior do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho, e foi assinado no dia 13 de agosto de 2004.

O relatório da OIT, entretanto, não tratou apenas dos avanços e acabou por mostrar que a realidade brasileira estava muito longe do ideal8. A falta de políticas públicas preventivas9, a indefinição na questão da reforma

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agrária10, a dificuldade de punição dos culpados, a perpetuação da miséria são exemplos de questões não

A tabela abaixo traz os dados anuais - 2003 a 2011 - da Comissão pastoral da Terra sobre o trabalho escravo:

[VER PDF ADJUNTO]

(*) o número total de denúncias não ficou disponível.

(**) O último número de libertados divulgado pela SIT é 2.485. Incluímos mais 3 ações de resgate: 1 realizada pela PM-TO (2 lib.), 1 realizada por um trabalhador no PA (1 lib) e 1...

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