O Trabalho Decente como Resposta à Crise Mundial do Emprego

AutorLaís Abramo
Páginas367-375

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1. O surgimento da noção de trabalho decente

O conceito de trabalho decente expressa a síntese do mandato histórico e dos objetivos estratégicos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), agência especializada da Organização das Nações Unidas (ONU), fundada em 1919: a promoção das normas internacionais do trabalho, a geração de mais e melhores empregos para homens e mulheres, a extensão da proteção social e a promoção do tripartismo e do diálogo social.

Essa noção foi formalizada pela primeira vez na Memória apresentada pelo Diretor Geral da OIT na 87ª Reunião da Conferência Internacional do Trabalho, realizada em Genebra, em junho de 1999, nos seguintes termos:

"Atualmente, a finalidade primordial da OIT é promover oportunidades para que homens e mulheres possam conseguir um trabalho decente e produtivo em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas. (...) O trabalho decente é o ponto de convergência de quatro objetivos estratégicos: a promoção dos direitos fundamentais no trabalho, o emprego, a proteção social e o diálogo social. Isso deve orientar as decisões da Organização e definir sua tarefa internacional nos próximos anos." (CONFERENCIA INTERNACIONAL DEL TRABAJO, 1999)

A noção de Trabalho Decente integra as dimensões quantitativa e qualitativa do emprego. Ela propõe não apenas medidas dirigidas à geração de postos de trabalho e ao enfrentamento do desemprego, mas também à superação de formas de trabalho que geram renda insuficiente para que os indivíduos e suas famílias superem a situação de pobreza, ou que se baseiam em atividades insalubres, perigosas, inseguras e/ ou degradantes. Afirma a necessidade de que o emprego esteja também associado à proteção social e aos direitos do trabalho, entre eles os de representação, associação, organização sindical e negociação coletiva.

Em outras palavras, o conceito de trabalho decente acrescenta, à noção anteriormente já consolidada de um emprego de qualidade, as noções de direitos (todas as pessoas que vivem do seu trabalho são sujeitos de direito e não apenas aquelas que estão no setor mais estruturado ou formalizado da economia), proteção social, voz e representação. Reafirma que existem formas de emprego e trabalho consideradas inaceitáveis e que devem ser abolidas, como o trabalho infantil e todas as formas de trabalho forçado, obrigatório ou degradante. Afirma a necessidade imperiosa de reduzir os défices de trabalho decente na economia informal e de avançar no sentido de uma progressiva formalização. Define a equidade de gênero como um eixo transversal desse conceito.

Trata-se, portanto, de um conceito multidimensional.

Ao definir a promoção do Trabalho Decente como o aspecto central e integrador de sua estratégia, a OIT reafirma o seu compromisso com o conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras e não apenas com aqueles que têm um emprego regular, estável, protegido, no setor formal ou estruturado da economia. A promoção do trabalho decente (ou a redução dos seus défices) é um objetivo que deve ser perseguido também em relação ao conjunto das pessoas - homens, mulheres e jovens - que trabalham à margem do mercado de trabalho estruturado. Todas as pessoas que trabalham têm direitos - assim como níveis mínimos de remuneração, proteção e condições de trabalho - que devem ser respeitados. Essa noção, portanto, inclui o emprego assalariado, o trabalho subcontratado, terceirizado, autônomo ou por conta própria, o trabalho a domicílio, assim como a ampla gama de atividades

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realizadas na economia informal e na economia do cuidado (RODGERS, 2002).

É necessário também assinalar a forte relação existente entre o conceito de trabalho decente e a noção da dignidade humana. Com efeito, tal como discutido por Rodgers (2002), o trabalho é o âmbito para o qual confluem os objetivos econômicos e sociais das pessoas. O trabalho supõe produção e rendimentos. Mas significa também integração social, identidade e dignidade pessoal. O vocábulo decente expressa algo que é, ao mesmo tempo, suficiente e desejável. Um trabalho decente significa um trabalho no qual o seu rendimento e as condições em que este se exerce estão dentro das aspirações razoáveis de pessoas razoáveis. A palavra decente incorpora assim, implicitamente, os padrões básicos de cada sociedade. A sua falta ou ausência teria portanto, segundo esse autor, algo em comum com os conceitos de privação e exclusão, que se referem às situações econômicas e sociais que não satisfazem às normas sociais.

Por outo lado, o conceito de trabalho decente está estreitamente vinculado à noção de uma agenda de trabalho decente, que diz respeito às formas pelas quais ele pode ser aplicado a níveis e processos de desenvolvimento distintos no âmbito mundial, regional ou nacional. Mas, como fazer isso? Como aplicar o conceito a essas distintas realidades? Existe um nível definido de trabalho decente ao qual todos deveriam aspirar, ou isso varia no tempo e no espaço?

Para responder essas perguntas, é necessário assinalar que o trabalho decente tem um piso básico e mínimo, que diz respeito a direitos e princípios universais, mas não um teto. O que se considera trabalho decente acima desse limite mínimo reflete os valores e possibilidades de cada sociedade em cada momento histórico.

Assim, o trabalho decente constitui uma meta que evolui em compasso com as possibilidades das sociedades, um patamar que se desloca conjuntamente com o progresso econômico e social. O conceito de trabalho decente proporciona assim um marco para a melhoria das condições e relações de trabalho a partir de determinados parâmetros. As metas concretas, em cada caso, dependerão dos valores, prioridades e possibilidades de cada sociedade e poderão ir sendo modificadas com o tempo. Muitos dos elementos constitutivos do trabalho decente, tais como os níveis de segurança econômica ou de qualidade no emprego são metas de desenvolvimento que costumam ampliar-se de acordo com as possibilidades econômicas e sociais de uma dada realidade.

Portanto, o conteúdo de uma agenda de trabalho decente deverá variar conforme a situação econômica e social e os níveis de desenvolvimento de cada país ou região. Seus objetivos e pautas serão diferentes em cada sociedade e em cada momento histórico, mas o marco geral e os princípios nos quais essa agenda se baseia serão os mesmos. O sistema de normas da OIT oferece uma referência clara para consolidar os avanços em todas as dimensões do trabalho decente. Fornece, além disso, pautas comparativas para medir os avanços realizados e os obstáculos e carências existentes (RODGERS, 2002).

2. As quatro áreas estratégicas da agenda do trabalho decente

A agenda de trabalho decente está composta por quatro áreas principais: direitos do trabalho, emprego, proteção social e diálogo social.

O parâmetro para a primeira dimensão da Agenda do Trabalho Decente, os direitos do trabalho, são as normas internacionais do trabalho (convenções e recomendações da OIT), definidas em forma tripartite por governos, organizações sindicais e organizações de trabalhadores de seus estados membros, reunidos na Conferência Internacional do Trabalho. As Convenções da OIT definem padrões mínimos que devem ser seguidos por todos os países que as ratificam. De especial importância são as 8 convenções e recomendações que fazem parte da Declaração relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho, adotada pela Organização em junho de 1998: liberdade de associação e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva, eliminação de todas as formas de trabalho forçado, abolição efetiva do trabalho infantil e eliminação de todas as formas de discriminação no emprego e na ocupação1.

Estes são direitos básicos, sobre os quais podem ser fundados, construídos e conquistados outros direitos e capacidades.

Um dos objetivos fundamentais da Agenda Global de Trabalho Decente da OIT é promover a ratificação universal dessas oito convenções. Por outro lado, todos os Estados- -Membros da OIT, pelo simples fato de sê-lo e de haverem aderido à sua Constituição, estão obrigados a respeitar e promover esses direitos e princípios, havendo ou não ratificado as convenções a eles correspondentes.

No que se refere ao emprego, é importante não apenas gerar postos de trabalho, mas também garantir um padrão mínimo de qualidade do emprego gerado. Este abarca uma combinação complexa de fatores, que inclui tanto aspectos das relações sociais de trabalho, como o caráter mais ou menos estável e permanente dos contratos de trabalho e o nível das remunerações, como aspectos da segurança material com que se realizam as diferentes tarefas e atividades de trabalho (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DEL TRABAJO, 1999).

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A segurança e a proteção social constituem a terceira dimensão do trabalho decente. A OIT calcula que mais de 6000 pessoas morrem diariamente no mundo em consequência de acidentes ou enfermidades do trabalho, o que perfaz um total anual de 2,3 milhões de mortes por esses motivos. Calcula também que se produzem anualmente 337 milhões de acidentes de trabalho no mundo2. Muitas ocupações são inseguras porque são irregulares ou provisórias, porque a sua remuneração é instável, porque envolvem riscos físicos ou expõem trabalhadores e trabalhadoras a diversos tipos de enfermidades físicas ou psíquicas. Dessa forma, a proteção social - especialmente os direitos associados à maternidade, à saúde, à aposentadoria e à proteção em situações de desemprego e de procura de emprego - é fundamental para assegurar a qualidade de vida dos trabalhadores e trabalhadoras. Constitui um desafio prioritário a extensão dessa proteção aos trabalhadores e trabalhadoras...

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