O corpo em Foucault: superfície de disciplinamento e governo

AutorCláudio Lúcio Mendes
Páginas168-181

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Introdução

Neste* artigo, exploro o significado e a importância da noção de corpo nas análises foucaultianas. O que Foucault entendeu por corpo, como a maioria de seus temas de estudo, não é facilmente sistematizável, principalmente porque ele não se preocupou com explicitá-lo em suas obras. Mesmo assim, pode-se extrair de sua produção, especialmente a partir de Vigiar e Punir , seu entendimento de corpo, ou melhor, o significado que atribui ao corpo e a importância desse em suas obras.

Para Foucault, o corpo é ao mesmo tempo uma massa, um invólucro, uma superfície que se mantém ao longo da história. Sintetizando, pode-se dizer que, para Foucault, o corpo é um ente, composto por carne, ossos, órgãos e membros, isto é, matéria, literalmente um lócus físico e concreto. Essa matéria física não é inerte, sem vida, mas sim uma superfície moldável, transformável, remodelável por técnicas disciplinares e de biopolítica. Com isso, o corpo é um ente – com sua propriedade de “ser” –, que sofre a ação das relações de poder que compõem tecnologias políticas específicas e históricas. 2

Ao contrário do sujeito – que não existe a priori , mas é uma invenção pautada em discursos e relações de poder-saber que o constituem –, o corpo em Foucault preexiste como superfície. Contudo, como objeto de relações de poder-saber que constituem atitudes corporais e formas de sujeito, o corpo sofre ações baseadas em diferentes tecnologias historicamente elaboradas. Pode-se dizer que o corpo seria um arcabouço para os processos de subjetivação, a trajetória para se chegar ao “ser” e também ser prisioneiro deste. A constituição do ser humano, como um tipo específico de sujeito, ou seja, subjetivado de determinada maneira, só é possível pelo “caminho” do corpo.

Levando-se em conta algumas entrevistas dadas por Foucault (1999), publicadas em Estética, Ética y Hermenêutica 3 – nas quais afirma que, na trajetória de sua produção, sempre esteve preocupado com fazer uma história do sujeito moderno ou, em outros termos, uma história da subjetivação –, não seria exagero afirmar que esteve preocupado também com uma história do corpo. Portanto, para compreender o sentido e o significadoPage 169do corpo em Foucault – procurando explicar o que seria esse “ente” corpo e as técnicas para constituí-lo de determinada forma –, é necessário entender suas análises sobre os processos de subjetivação. Em suma, concomitantemente à história do sujeito moderno, em certo sentido, Foucault fez uma história política do corpo.

Essa história política da subjetivação feita por Foucault, relacionada a uma noção de corpo, como a maior parte de suas análises, tem dado frutos interessantes. Vários trabalhos exploram os gestos, as falas e as posturas possíveis em determinadas sociedades. Abordam, igualmente, a ação que sofre o corpo pelas técnicas de poder presentes em instituições como as escolas, os hospitais, as prisões e outras. Da mesma maneira, tem sido produtivo analisar como corpos sexualizados, na sociedade moderna, vêm sendo falados pela mídia e por especialistas (FISCHER, 1996). Não se pode esquecer dos trabalhos que exploram os atrelamentos desses corpos com a AIDS e com a saúde (WAGENER, 1998) ou mesmo do governo dos corpos para o bem-estar social e individual (LUPTON, 1995; NETTLETON, 1997). As influências dos trabalhos de Foucault e suas problematizações sobre o corpo podem ser encontradas em muitos estudos históricos (SANT’ANA, 1997) e em abordagens sobre a sexualidade e o corpo nas sociedades contemporâneas (LOURO, 1999). Foi pautado nessas leituras que me senti estimulado a tratar da noção de corpo em Foucault.

Dentre outras coisas, a produção de Foucault estimula a analisar o corpo em seus confrontamentos com outros corpos, no nosso cotidiano escolar, familiar, social, “público” e “privado”. Os estudos de Foucault podem ajudar a compreender bem os mecanismos, primordialmente históricos, de continuidades e rupturas vivenciadas por esse corpo.

Para desenvolver essas discussões, primeiramente, exponho algumas relações entre corpo e poder disciplinar. Logo depois, trago algumas discussões entre corpo e biopolítica. Finalizando, com base em colocações do próprio Foucault, levanto algumas problematizações em torno da noção de corpo foucaultiano, apresentando questões para serem discutidas na contemporaneidade.

Corpo e poder disciplinar

Os processos de subjetivação dos seres humanos – pelo emprego de relações de poder sobre o corpo – só podem ser entendidos como mecanismos sociais partindo do princípio de que tal corpo apresenta aspectos, formas de percepção e inserção constantes para o exercício de relações de poder. Dito de outra maneira, o corpo do ser humano (ou, melhor dizendo, uma concepção de corpo) deve apresentar maneiras e estruturas mais ou menos constantes e uniformes.

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Mas como o corpo sofre a ação de relações de poder? De outra forma, como produzimos efeitos sobre o corpo, empregando relações de poder que tornam determinadas técnicas e estratégias mecanismos eficientes para isso? No emprego desses mecanismos, o que haveria de a-histórico (ou se haveria mesmo algo a-histórico) e o que seria o exercício de relações de poder? “Foucault poderia discutir essas questões sugeridas em seus estudos. Porém, permaneceu em silêncio” (DREYFUS e RABINOW, 1995, p. 125). Para Foucault, bastou interpretar o corpo como uma superfície para o exercício de relações de poder, “caminho” para a subjetivação, não se preocupando tanto com o que seria o “caminho” desse exercício. Mesmo com esses silêncios , “um dos maiores empreendimentos de Foucault foi sua habilidade em isolar e conceituar o modo pelo qual o corpo se tornou componente essencial para a operação de relações de poder na sociedade moderna” (DREYFUS e RABINOW, 1995, p. 125). Não estou interessado em discutir o quão importante são as possíveis estruturas invariantes do corpo, mas sim como a noção de corpo para Foucault é fator central para explicar a expansão e a determinação de relações de poder-saber nas sociedades modernas.

Foucault atrela corpo à proveniência (procedência, fonte, origem). Mas o que seria isso? “[...] é um tronco de uma raça [...]; é o antigo pertencimento a um grupo – do sangue, da tradição, de ligação entre aqueles da mesma altura ou da mesma baixeza” (FOUCAULT, 1996, p. 20). Segundo Foucault, apoiado em Nietzsche, essas ligações culturais e sociais vão ser impressas no corpo. Contudo, elas constituem-se de forma nada linear. São lutas, desvios, articulações que vão compô-las e recompô-las. Sendo assim, as origens belas, superiores e bem determinadas pela história e pelo sangue são negadas. Nessa percepção, não existe nada que se assemelhe “à evolução de uma espécie, ao destino de um povo” (FOUCAULT, 1996, p. 20). A proveniência é aquilo que nos baliza, marcando nossos corpos de determinadas formas. De um lado, a proveniência está em nossos corpos. De outro, eles estão inseparavelmente atrelados às relações de poder- saber e a suas técnicas e tecnologias específicas.

As tecnologias e seus possíveis conjuntos de técnicas são organizados com base em prática de relações de poder-saber. Os processos de subjetivação, por meio de relações poder-saber, como descritas e analisadas por Foucault, atuam sobre o corpo do indivíduo por meio de técnicas e tecnologias. Poder-se-ia falar em disciplinamento e governo do corpo: “Ele tenta identificar os mecanismos específicos de tecnologias, através dos quais o poder realmente se articula com o corpo” (DREYFUS e RABINOW, 1995, p. 126).

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Quando Foucault se debruça sobre as radicais modificações de um poder soberano para as sutis técnicas de poder disciplinar, a partir do século XVII até o XIX, mostra como o sujeito deixa de ser supliciado e simplesmente assujeitado ao poder soberano. A disciplina vem tornar o corpo mais eficiente e mais dócil, e vice-versa. Estipula o que pode fazer e o que não deve fazer. Com base em tecnologias disciplinares, constrói-se uma “anatomia política” para melhor competência do corpo, diretamente ligada a maior enquadramento. Assim, desenvolvem-se formas para aperfeiçoar as forças corporais (pois as tornam mais econômicas) e igualmente para diminuí-las (naqueles momentos em que poderia desenvolver forças para transgredir a disciplina). Em outras palavras, com o poder disciplinar...

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