Fraudes Trabalhistas e Direito Penal

AutorAngelo Antonio Cabral
Páginas61-7

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1. Introdução

O constituinte brasileiro, num primeiro momento, optou por limitar a competência da Justiça do Trabalho às questões decorrentes da relação de emprego, segregando outras demandas civis e penais, ainda que decorrentes da relação de trabalho, à justiça comum, Estadual ou Federal. Em 2004, porém, a Emenda Constitucional n. 45 reformou a redação art. 114, da Constituição, admitindo a competência da Justiça do Trabalho para ações de indenizações por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho.

Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004)

I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios; (Incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004)

II as ações que envolvam exercício do direito de greve; (Incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004) III as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores; (Incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004)

IV os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição; (Incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004)

V os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o; (Incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004)

VI as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho; (Incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004)

VII as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho; (Incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004)

VIII a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir; (Incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004)

IX outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004)

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O novo texto não acometeu expressamente a Justiça do Trabalho de competência penal, mas a sua redação aberta foi suficiente para suscitar esta possibilidade,1 até o momento, rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal:

COMPETÊNCIA CRIMINAL. Justiça do Trabalho. Ações penais. Processo e julgamento. Jurisdição penal genérica. Inexistência. Interpretação conforme dada ao art. 114, incs. I, IV e IX, da CF, acrescidos pela EC n. 45/2004. Ação direta de inconstitucionalidade. Liminar deferida com efeito ex tunc. O disposto no art. 114, incs. I, IV e IX, da Constituição da República, acrescidos pela Emenda Constitucional n. 45, não atribui à Justiça do Trabalho competência para processar e julgar ações penais. (STF, Tribunal Pleno, ADI 3684 MC/ DF, Relator: min. Cezar Peluso, Julgamento: 01.02.2007).2

O afastamento do "exercício autêntico de jurisdição penal",3 no entanto, não significa que a Justiça do Trabalho não exerça funções penais. Ao contrário, há pelo menos três situações frequentes em que o exercício da jurisdição trabalhista exigirá o manejo adequado de regras, princípios e institutos de Direito (processual) Penal: i) a interpretação dos institutos penais afins;4 ii) o dever de noticiar5 e iii) a prisão em flagrante delito.6 Guilherme Guimarães Feliciano denomina esse elenco de afazeres de função penal periférica da Justiça do Trabalho7 - na medida em que não se pode falar em jurisdição penal da Justiça do Trabalho.

Enquanto a Justiça do Trabalho não consolida a sua jurisdição penal, importa-nos refletir sobre as conexões entre o Direito Penal e o Direito do Trabalho, com o objetivo de aprimorar o exercício da função penal periférica da Justiça do Trabalho e abrir caminho para o amadurecimento que resultará no exercício pleno da competência criminal. Daí a proposta de se analisar o crime previsto no art. 203, do Código Penal à luz da distinção entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador.

2. Frustração de direito assegurado por lei trabalhista
2.1. Considerações Iniciais

O crime de frustração de direito trabalhista assegurado por lei trabalhista está tipificado no artigo 203, do Código Penal:

frustração de direito assegurado por lei trabalhista

Art. 203 - Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho:

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Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei n. 9.777, de 29.12.1998) § 1º na mesma pena incorre quem: (Incluído pela Lei n. 9.777, de 29.12.1998)

I - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida; (Incluído pela Lei n. 9.777, de 29.12.1998)

II - impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais. (Incluído pela Lei n. 9.777, de 29.12.1998) § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. (Incluído pela Lei n. 9.777, de 29.12.1998)

As legislações penais anteriores ao Código Penal de 1940, a saber, o Código Criminal do Império (1830) e o Código Penal Republicano (1890), não tutelavam as relações de trabalho - refletindo os valores aristocráticos e escravocratas da sociedade -, de modo que a atual legislação penal inaugurou a correlação entre o Direito Penal e o Direito do Trabalho.

A finalidade do art. 203, do Código Penal é reforçar, tornar ainda mais sólida a garantia dos direitos assegurados em lei trabalhista. Trata-se de norma penal em branco,8 pois seu conteúdo é contemplado por outra lei, que concede o direito trabalhista. E é nesta que devemos procurar para sabermos se houve a frustração de direito.9

Os meios executivos são a violência e a fraude. Violência se entende a física, excluída a moral, já que a lei, quando emprega aquela expressão, somente se refere a vis corporalis. Exclui-se, portanto, a vis compulsiva, que só poderá ser punida se integrar um dos delitos definidos nos arts. 197, do Código Penal.10 O conceito de fraude, porém, absolutamente plurívoco, merece uma análise detalhada.

2.1.2. Fraude

A preocupação penal com a fraude não reflete uma preocupação com a violência, mas com a astúcia, o engodo, aquilo que, sem alarde, envolve a vítima de maneira sutil e segura. É a "forma criminal do civilizado, daquele a quem repugna o sangue alheio", na dicção de magalhães noronha.11 A fraude acompanha a civilização e desde os Códigos de Hammurabi e de manu é punida. A sua proliferação, ao lado da diminuição dos delitos violentos, é consequência do melhor aparelhamento da sociedade, fruto de seu progresso e, em alguma medida, de sua complexidade.

Não há distinção ontológica entre fraude penal e fraude civil, mas não há como negar que existe fraude fora da órbita penal. Se assim não fosse, adverte noronha, seria raro o negócio jurídico ou a transação comercial em que não se divisaria fraude punível, na medida em que neles são comuns os pequenos ardis, os ligeiros artifícios e "os leves expedientes visando a resultado redondoso".12

Nelson Hungria, por seu turno, entrevendo uma especialidade na fraude penal afirma: "[...] há quase sempre fraude penal quando, relativamente idôneo o meio iludente, se descobre, na investigação retrospectiva

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do fato, a idéia preconcebida o propósito ab initio da frustração do equivalente econômico".13 O próprio Hungria, entretanto, não elevou esse critério como regra absoluta, utilizando-o como mero parâmetro de orientação na apreciação judicial do fato.

A jurisprudência também diverge quanto à materialização do crime, afastando a sanção penal em hipóteses gravíssimas na perspectiva juslaboral, como o não pagamento de salários:

O fato de contratar operários e não pagar os seus salários não cofigura, sequer em tese, o delito de estelionato, mas mero ilícito trabalhista. (TACRIM-SP - HC - Rel. Geraldo Pinheiro - RT 454/383).14

Diante dessa indefinição jurisprudencial entre o que é "mero ilícito" trabalhista e o que efetivamente consubstancia-se como ilícito penal, faremos, após dissecar o tipo penal, uma análise do debate Direito Penal x Direito Administrativo Sancionador.

2.2. Bem Jurídico Tutelado

O bem jurídico-penal abrange todo e qualquer direito protegido pela legislação trabalhista. "O legislador buscou tutelar a legislação trabalhista, entendendo indispensável ao desenvolvimento harmônico da sociedade o cumprimento dos deveres impostos ao empregador e ao empregado".15 Trata-se, como já afirmado, de norma penal em branco, pois à legislação compete definir e disciplinar os direitos trabalhistas assegurados aos empregados e aos empregadores.

Ainda que insuficiente e constantemente mal interpretado/aplicado, em alguma medida o tipo penal aproxima-se do programa penal constitucional:

Mas não é só. O trabalho não é constitucionalizado apenas em seu valor humano, mas também - e sobretudo - em seu valor...

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