Função das arras

AutorBernardo Gonçalves Petrucio Salgado
Páginas25-87
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Capítulo 1
FUNÇÃO DAS ARRAS
1.1 A função dos institutos como elemento decisivo no
procedimento interpretativo
Institutos jurídicos são histórico-relativos.3 As noções a eles
atribuídas refletem o produto de uma época, e precisam,
permanentemente, se adaptar às mudanças impostas pelos tempos
que se seguem. Positivados como espelhos do pensamento
dominante numa sociedade em que foram forjados, os institutos
vivem sob constante mutação, e aos poucos vão se amoldando às
exigências impostas pelas novas eras. A realidade muda. Na
medida em que a ela se vincula, o direito precisa mudar também.4
3 Diante da constatação de que “os valores jurídicos perduram no tempo. São
produzidos um a vez, mas são continuamente (re)lidos (ou recebidos)”, António
Manuel Hespanha adverte que “a história do d ireito tem de evitar a reificação do
significado dos valores, categorias ou conceitos, já que estes por dependerem
menos das intenções dos seus autores do que das expectativas dos seus leitores
sofrem permanentes modificações do seu sentido (contextual)” (HESPANHA,
António Manuel. A cultura jurídica europeia. Coimbra: Almedina, 2012, p. 28).
4 Nas palavras de Pietro Perlingieri: “Ao fenômeno jurídico não é possível
subtrair a complexidade da factualidade que, em realidade, é uma comp onente
essencial da normatividade e, sobretudo, da sua historic idade” (PERLINGIERI,
Pietro. O direito civil na lega lidade constitucional. Rio de Janeiro: Renov ar,
2008, p. 201). Também assim: “O direito em sociedade não consiste apenas em
considerar o papel do direito no seio de processos sociais (como o da instauração
da disciplina social), mas também em considerar que a própria produção do
direito (dos valores jurídicos, dos textos jurídicos) é, ela mesma, um processo
social. Ou seja, algo que não depen de apenas da capacidade d e cada jurista para
pensar, imaginar e inventar, mas de um complexo que envolve, no li mite, toda a
sociedade, desde a organização da escola ao s sistemas de comunicação
intelectual, à organização da justiça, à sensibilidade jurídica dominante e muito
mais. Este tópico obriga a que se considere o processo social de produção do
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Essa mudança nem sempre tem origem em transformações
legislativas. O pioneirismo vem, com maior frequência, da releitura
de noções passadas em perspectiva contemporânea. O intérprete
atento às necessidades sociais do seu tempo não deve se apegar à
literalidade de enunciados normativos desenvolvidos no passado e
deixar de promover a adequação dos institutos cunhados em
tempos remotos, como se o direito guardasse amarras inquebráveis
com a história. Por meio de interpretação responsável, guiada pelo
rigor de método, cabe ao aplicador atribuir às figuras jurídicas
significados fiéis à verdade do momento, ciente de que as funções
desempenhadas por determinada figura há algum tempo podem
não espelhar as mesmas razões que a justificam em uma sociedade
transformada.5
Da mesma maneira que a historicidade é marca indelével
das instituições, a função de um instituto é determinante para se
fixar as regras que lhe serão aplicáveis.6 A função desempenha o
papel de guia do intérprete: atua como espécie de lente pela qual,
próprio direito na explicação d o direito” (HESPANHA, António Manuel. A
cultura jurídica europeia, cit., p. 27).
5 “O intérprete está inserto em um dado tempo e lugar, o que acaba por
circunscrever a sua compreensão e sua interpretação ao conhecimento e ao
reconhecimento de um sentido vigente, não fixo nem imóvel” (FACHIN, Luiz
Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro : Renovar,
2015, p. 144). Também Karl Larenz reforça a abertura e a mobilidade do sistema
jurídico, advertindo que é possível colo-lo continuamente em questão: “Já não
nos é lícito acreditar que é hoje possível u m conhecimento definitivo, nem
mesmo daquilo que nas actuais condições seria justo «em si» ou
indubitavelmente correcto. É-nos, em todo o caso, lícito acreditar que nos chega
à mão, aqui e ali, um pedaço do fio cujo fim é para nós oculto. Sendo assim,
então para a ciência do Direito como também para a filo sofia «prática» (quer
dizer, a ética e a filosofia do Direito), a única espécie de sistema ainda possível é
o sistema «aberto» e, até um certo grau, «móvel» em si, que nunca está completo
e pode ser continuamente posto em questão, que toma clara a «racionalidade
intrínseca», os valores directivos e os princípios do Direito” (LARENZ, Karl.
Metodologia da ciência do direito. ed. Lisboa: Fund ação Calouste
Gulbenkian, 2005, p. 241).
6 KONDER, Carlos Nelson. Arra s e clá usula pena l nos contr atos imobiliár ios.
Revista dos Tribunais, Rio de Janeiro, mar./abr. 2014, p. 86.
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debruçando-se a visão sobre os institutos, torna possível definir o
seu adequado regramento.
Nesse sentido, Salvatore Pugliatti afirma que a função é a
razão genética do instituto e seu real elemento caracterizador,7
enquanto Pietro Perlingieri explica a função como “síntese dos
efeitos essenciais”, determinantes na definição do para que os
institutos servem.8 Enquanto a análise estrutural revela o que são, o
exame funcional permite descortinar a quais finalidades eles se
prestam dentro do ordenamento,9 modelando o espaço de
autonomia concedido aos indivíduos para deliberarem sobre os seus
interesses.10
A evolução da forma de se pensar a relação obrigacional
constitui bom exemplo da importância do aspecto funcional. Antes
enxergada apenas como vínculo de adstrição que atribui ao credor o
direito de exigir uma prestação do devedor, a obrigação passou a
ser vislumbrada em perspectiva dinâmico-funcional, pela qual, ao
lado do dever de prestar, também assumem posição de relevo os
deveres anexos,11 exigíveis do devedor e do próprio credor.
Amplia-se o objeto da relação obrigacional, com a constatação de
7 PUGLIATTI, Salvatore. La proprietà nel nuovo dir itto. Milão: Giu ffrè, 1964,
p. 300.
8 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na le galidade constitucional, cit., p. 643.
9 “Preliminarmente, pode-se dizer que estrutura e função respondem a duas
indagações que se põem em torno ao fato. O ‘como é?’ evidencia a estrutura, o
‘para que serve?’ evidencia a função” (PERLINGIERI, Pietro. Per fis do direito
civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 94).
10 “[O] espaço de autonomia privada (a estrutura dos poderes conferidos para
exercício de direitos dela decorrentes) é dete rminado pela função que
desempenha na relação jurídica” (TEPEDINO, Gustavo. Esboço de uma
classificação funcional dos atos jur ídicos. Revista Bra sileira de Direito Civil
RBDCivil, Belo Horizonte, v. 1, jul./set. 2014, p. 12).
11 Giovanni Ettore Nanni comenta, nessa linha de raciocínio, que foi alargada “a
abrangência da relação jurídica, impondo-se, além da simples prestação, deveres
correlatos, contornos e comportamentos às partes, razão pela qual ela passou a
ser vista como relação complex a” (NANNI, Giovanni Ettore. Mora. In:
LOTUFO, Renan; NANNI, Giovan ni Ettore (coord.). Obrigações . São Paulo:
Atlas, 2011, p. 586).

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