Regramento das arras

AutorBernardo Gonçalves Petrucio Salgado
Páginas123-195
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Capítulo 3
REGRAMENTO DAS ARRAS
3.1 Arras confirmatórias
Analisadas as funções das arras e as questões que se
conectam com seu perfil estrutural, passa-se a examinar ao longo
desta seção o destino a ser atribuído ao sinal nos cenários de
execução e inexecução da prestação. Esse exame será feito de
acordo com cada espécie de arras e, no caso das confirmatórias,
também de acordo com cada patologia que se verifique no curso do
programa negocial: além da análise do destino das arras no
adimplemento, serão também examinadas as hipóteses de
inadimplemento absoluto ou mora.
Antes de avançar, reafirme-se apenas, como conceito, que
as arras confirmatórias são conveão acessória pela qual, no
momento da celebração do negócio jurídico, uma das partes entrega
à outra determinado bem móvel, fungível ou infungível, sob as
finalidades de incitar o adimplemento da relação obrigacional e
conferir a ambas as partes segurança constituída pela fixação de um
valor mínimo de indenização.
3.1.1 Adimplemento
Considerado o meio mais natural de extinção das
obrigações, o adimplemento é definido como o efetivo
cumprimento da prestação,225 consubstanciado no ato pelo qual o
devedor realiza o comportamento ajustado. Coloca-se em foco, na
225 GOMES, Orlando. Contra tos, cit., p. 88.
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conceituação clássica, a prestação-comportamento, lida tal qual
combinada no regulamento de interesses. O inadimplemento, a
contrario sensu, é há tempos conceituado como a não realização da
prestação “nos precisos termos em que ela está constituída”.226
Com o passar das épocas, a dogmática do direito das
obrigações precisou ser remodelada, sob o reconhecimento da
insuficiência dos critérios desenvolvidos em passado mais remoto.
Ganha destaque a percepção de que a relação obrigacional, longe
de se esgotar na mera contraposição de situações ativas e passivas,
funciona como processo,227 da mesma maneira que deve ser
encarada como totalidade.228
Dentro dessa nova forma de conceber a relação
obrigacional, credor e devedor deixam de ocupar posições
antagônicas e dialéticas, e passam a ser vislumbrados como
componentes de uma mesma ordem de cooperação, sempre
endereçada à realização do fim a que a obrigação se dirige.229
Reconhece-se, então, que a relação constitui vínculo complexo:230 é
composta não dos tradicionais deveres de prestação, mas
também de situações subjetivas outras, a exemplo dos deveres
226 ANDRADE, Manuel A. Domingues. Teoria geral das obriga ções. Coimbra:
Almedina, 1966, p. 277.
227 “Com a ex pressão ‘obrigação como processo’, tenciona-se sublinhar o ser
dinâmico da obrigação, as várias fases que surgem no desenvolvimento da
relação obrigacional e que entre si se ligam com interdependência” (COUTO E
SILVA, Clóvis V. do. A obrigaçã o como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2007, p. 20).
228 Ibid., p. 18.
229 Ibid.
230 “Na verdade, existem duas maneiras de encarar qualq uer situação jurídica
obrigacional da vida real: uma, vendo nela apenas o que se chama de relação
obrigacional simples, isto é, somente olhando o vínculo entre credor e devedor,
que se traduz no poder do primeiro de exigir uma p restação, que o segundo tem o
dever de realizar; outra, encarando-a na per spectiva da pluralidade de direitos,
deveres, po deres, ônus e faculdades interligados e nascidos de um determinado
fato (por exemplo, um contrato ou um ato ilícito), dig am ou não respeito a
prestações exigíveis de u ma ou outra parte. Nesta segunda perspectiva teremos o
que se chama de relação obrigacional complexa, ou sistêmica” (NORONHA,
Fernando. Direito da s obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 92).
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laterais impostos pela boa-fé objetiva.231 Não é a avaliação estática
da prestação-comportamento que tem de figurar no centro das
atenções; funcionalmente, a relação obrigacional apenas satisfaz o
seu escopo quando é alcançado o interesse útil do credor com a
realização da prestação devida.232 O comportamento que do
devedor se espera é o comportamento endereçado à consecução do
interesse útil programado.
Em abono à preponderância do aspecto funcional e à
imprescindibilidade de se avaliar a obrigação de forma dinâmica,
Pietro Perlingieri lembra que não se deve conceber direitos e
deveres fora de uma relação jurídica considerada no seu todo.233
Segundo explica, a conexão das situações subjetivas dentro de uma
mesma relação “exprime a exigência de valorar o comportamento
231 “Ao lado da autonomia privada, a boa -fé objetiva se erige como fonte
heterônoma de deveres e exige dos contratantes, a despeito de sua vontade, a até
contra ela, a adoção de condutas voltadas à perfeita consecução do
adimplemento. Não se trata de mecanismo de reforço dos deveres criados pelas
partes, mas do estabelecimento de deveres diversos daqueles conformados pela
autonomia negocial, por exigência do sistema, em face da concreta relação
jurídica, de sua função econômico-individual. E referidos deveres se integram de
tal forma ao programa contratual, que à satisfação do interesse das partes não
basta a execução do dever principal de prestação, exigindo-se observância, pelo
contratante, de todos os deveres incidentes na concreta relação” (T ERRA, Aline
de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa, cit., p. 100).
232 Ander son Schreiber assevera, quanto a esse ponto, que a “própria noção de
obriga ção, identificada com um vínculo de submissão do devedor ao credor,
vem sendo, gradativamente, abandonada em favor do co nceito mais equilibrado
de rela ção obriga cional, composta por direitos e deveres recíprocos, dirigidos a
um esco po comum. Avultam, neste sentido, em importância os chamados
deveres anexos ou tutelares, que se embutem na regulamentação contratual, na
ausência ou mesmo em contrariedade à vontade das partes, impondo
comportamentos que vão muito além da literal execução da prestação principal.
O próprio cumprimen to ou descumprimento da prestação ajustad a deve ser
examinado à luz do propósito efetivamente perseguido pelas partes com a
constituição da específica relação obrigacional” (SCHREIBER, Anderson. A
tríplice tr ansformação do a dimplemento: adimplemento substancial,
inadimplemento antecipado e outras figuras. Revista Trimestra l de Direito Civil,
Rio de Janeiro, v. 8, n. 32, out./dez. 2007, p. 6).
233 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional, cit., p.
735.

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