Os direitos fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional

AutorProf. Gilmar Ferreira Mendes
CargoProfessor Adjunto da UNB. Mestre em Direito (UNB)
Páginas1-12

Professor Adjunto da UNB. Mestre em Direito (UNB). Doutor em Direito pela Universidade de Münster, República Federal da Alemanha - RFA (1990). Procurador da República. Atual Advogado-Geral da União.

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1. Introdução

A Constituição Brasileira de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais. Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de lhes emprestar significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra em setenta e sete incisos e dois parágrafos (art. 5º), reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar a esses direitos. A idéia de que os direitos individuais devem ter eficácia imediata ressalta a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância.

O constituinte reconheceu ainda que os direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-los (art. 60, § 4º).

Se se pretende atribuir aos direitos individuais eficácia superior à das normas meramente programáticas, então deve-se identificar precisamente os contornos e limites de cada direito, isto é, a exata definição do seu âmbito de proteção. Tal colocação já é suficiente para realçar o papel especial conferido ao legislador tanto na concretização de determinados direitos, quanto no estabelecimento de eventuais limitações ou restrições1. Evidentemente, não só o legislador, mas também os demais órgãos estatais com poderes normativos, Page 2 judiciais ou administrativos cumprem uma importante tarefa na realização dos direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva. Enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face dos órgãos obrigados2. Na sua dimensão como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais - tanto aqueles que não asseguram, primariamente, um direito subjetivo, quanto aqueloutros, concebidos como garantias individuais - formam a base do ordenamento jurídico de um Estado de Direito democrático.

É verdade consabida, desde que Jellinek desenvolveu a sua Teoria dos quatro "status"3, que os direitos fundamentais cumprem diferentes funções na ordem jurídica.

Na sua concepção tradicional, os direitos fundamentais são direitos de defesa (Abwehrrechte), destinados a proteger determinadas posições subjetivas contra a intervenção do Poder Público, seja pelo (a) nãoimpedimento da prática de determinado ato, seja pela (b) não-intervenção em situações subjetivas ou pela não-eliminação de posições jurídicas4.

Nessa dimensão, os direitos fundamentais contêm disposições definidoras de uma competência negativa do Poder Público (negative Kompetenzbestimmung), que fica obrigado, assim, a respeitar o núcleo de liberdade constitucionalmente assegurado5.

Outras normas consagram direitos a prestações de índole positiva (Leistungsrechte), que tanto podem referir-se a prestações fáticas de índole positiva (faktische positive Handlungen), quanto a prestações normativas de índole positiva (normative Handlungen)6.

Tal como observado por Hesse, a garantia de liberdade do indivíduo que os direitos fundamentais pretendem assegurar somente é exitosa no contexto de uma sociedade livre. Por outro lado, uma sociedade livre pressupõe a liberdade dos indivíduos e cidadãos, aptos a decidir sobre as questões de seu interesse e responsáveis pelas questões centrais de interesse da comunidade. Page 3 Essas características condicionam e tipificam, segundo Hesse, a estrutura e a função dos direitos fundamentais. Eles asseguram não apenas direitos subjetivos, mas também os princípios objetivos da ordem constitucional e democrática7.

2. Direitos fundamentais enquanto direitos de defesa

Enquanto direitos de defesa, os direitos fundamentais asseguram a esfera de liberdade individual contra interferências ilegítimas do Poder Público, provenham elas do Executivo, do Legislativo ou, mesmo, do Judiciário. Se o Estado viola esse princípio, dispõe o indivíduo da correspondente pretensão que pode consistir, fundamentalmente, em uma:

(1) pretensão de abstenção (Unterlassungsanspruch);

(2) pretensão de revogação (Aufhebungsanspruch), ou, ainda, em uma

(3) pretensão de anulação (Beseitigungsanspruch)8.

Os direitos de defesa ou de liberdade legitimam ainda duas outras pretensões adicionais:

(4) pretensão de consideração (Berücksitigungsanspruch), que impõe ao Estado o dever de levar em conta a situação do eventual afetado, fazendo as devidas ponderações9; e

(5) pretensão de defesa ou de proteção (Schutzanspruch), que impõe ao Estado, nos casos extremos, o dever de agir contra terceiros10.

A clássica concepção de matriz liberal-burguesa dos direitos fundamentais informa que tais direitos constituem, em primeiro plano, direitos de defesa do indivíduo contra ingerências do Estado em sua liberdade pessoal e propriedade. Esta concepção de direitos fundamentais - apesar de ser pacífico na doutrina o reconhecimento de diversas outras - ainda continua ocupando um lugar de destaque na aplicação dos direitos fundamentais. Esta concepção, sobretudo, objetiva a limitação do poder estatal a fim de assegurar ao indivíduo uma esfera de liberdade. Para tanto, outorga ao indivíduo um direito subjetivo que permite evitar interferências indevidas no âmbito de proteção do direito fundamental ou mesmo a eliminação de agressões que esteja sofrendo em sua esfera de autonomia pessoal.11 Page 4

Analisando as posições jurídicas fundamentais que integram os direitos de defesa, importa consignar que estes não se limitam às liberdades e igualdades (direito geral de liberdade e igualdade, bem como suas concretizações), abrangendo, ainda, as mais diversas posições jurídicas que os direitos fundamentais intentam proteger contra ingerências dos poderes públicos e também contra abusos de entidades particulares, de forma que se cuida de garantir a livre manifestação da personalidade, assegurando uma esfera de auto-determinação do indivíduo.12

3. Direitos fundamentais enquanto normas de proteção de institutos jurídicos

A Constituição outorga, não raras vezes, garantia a determinados institutos, isto é, a um complexo coordenado de normas, tais como a propriedade, a herança, o casamento, etc. Outras vezes, clássicos direitos de liberdade dependem, para sua realização, de intervenção do legislador.

Assim, a liberdade de associação (CF, art. 5º, XVII) depende, pelo menos parcialmente, da existência de normas disciplinadoras do direito de sociedade (constituição e organização de pessoa jurídica, etc.). Também a liberdade de exercício profissional exige a possibilidade de estabelecimento de vínculo contratual e pressupõe, pois, uma disciplina da matéria no ordenamento jurídico. O direito de propriedade, como observado, não é sequer imaginável sem disciplina normativa13.

Da mesma forma, o direito de proteção judiciária, previsto no art. 5º, XXXV, o direito de defesa (art. 5º, LV), e o direito ao juiz natural (art. 5º, XXXVII), as garantias constitucionais do habeas corpus, do mandado de segurança, do mandado de injunção e do habeas data são típicas garantias de caráter institucional, dotadas de âmbito de proteção marcadamente normativo14.

Entre nós, Ingo Sarlet assinala como autênticas garantias institucionais no catálogo da nossa Constituição a garantia da propriedade (art. 5º, XXII), o direito de herança (art. 5º, XXX), o Tribunal do Júri (art. 5º, XXXVIII), a língua nacional portuguesa (art. 13), os partidos políticos e sua autonomia (art 17, caput e §1º). Também fora do rol dos direitos e garantias fundamentais (Título II) podem ser localizadas garantias institucionais, tais como a garantia de um sistema de seguridade social (art. 194), da família (art. 226), bem como da autonomia das universidades (art. 207), apenas para mencionarmos alguns dos exemplos mais típicos. Ressalte-se que alguns desses institutos podem até Page 5 mesmo ser considerados garantias institucionais fundamentais, em face da abertura material propiciada pelo art. 5º, § 2º da Constituição.15

Nesses casos, a atuação do legislador revela-se indispensável para a própria concretização do direito. Pode-se ter aqui um autêntico dever constitucional de legislar (Verfassungsauftrag), que obriga o legislador a expedir atos normativos "conformadores" e concretizadores de alguns direitos16.

4. Direitos fundamentais enquanto garantias positivas do exercício das liberdades

A garantia dos direitos fundamentais enquanto direitos de defesa contra intervenção indevida do Estado e contra medidas legais restritivas dos direitos de liberdade não se afigura suficiente para assegurar o pleno exercício da liberdade. Observe-se que não apenas a existência de lei, mas também a sua falta podem revelar-se afrontosas aos direitos fundamentais17. É o que se verifica, v.g., com os direitos à prestação positiva de índole normativa, inclusive o chamado direito à organização e ao processo (Recht auf Organization und auf Verfahren) e, não raras vezes, com o direito de igualdade.

Vinculados à concepção de que ao Estado incumbe, além da...

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