Girando o caleidoscópio: a formação de novas imagens no trabalho de olhar para os dados da pesquisa qualitativa

AutorCarla da Silva Santana
CargoDocente e pesquisadora
Páginas408-423

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Introdução

Na pesquisa* qualitativa, uma das tarefas mais difíceis é chegar à etapa de compreensão dos dados com o menor desgaste possível. Muitos são os motivos que levam a esmorecer nessa etapa, podendo ser o exaustivo trabalho de campo ou a pouca definição das etapas de organização e análise de dados. Este artigo não tem a intenção de oferecer um roteiro de análise de dados, mas sim algumas reflexões sobre a tarefa de olhar para o dado colhido.

Uma obra aberta comporta muitos olhares, e sempre fica a impressão de inacabamento ou de não-contemplação dos muitos dizeres dos sujeitos em suas falas. Isso prova que, de fato, não há esgotamento do tema de pesquisa em si, o que nem seria possível, até porque não se trabalha com verdades absolutas, estagnadas. O dinamismo e a possibilidade de aproximação com a realidade ali apresentada traz todo o encantamento do estudo, que é finito, como trabalho acadêmico, de pesquisa. É sempre um recorte feito no espaço-tempo e pretende apenas um novo olhar que interroga determinado tema.

Trabalho com narrativas: a escuta como escolha

Na perspectiva de pesquisa qualitativa, a entrevista representa um dos instrumentos básicos para a coleta de dados. Segundo Lüdke e André (1986), é importante estar atento ao caráter de interação que permeia a entrevista, pois a relação que se cria é de troca, devendo haver uma atmosfera de influências recíprocas entre quem pergunta e quem responde.

A entrevista poder ser entendida como a primeira possibilidade dialógica com o sujeito da pesquisa. Na perspectiva teórico-metodológica, há de se compreender que método e teoria se interdependem e se significam. O caminho (a metodologia) escolhido para conhecer o outro já pressupõe uma forma de ver o mundo. Nesse sentido, entrevistar (o procedimento) significa acolher a fala do outro e oferecer a escuta.

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Esse exercício dialógico é sempre permeado de tensão, pois essa dinâmica de inscrever o outro em nosso universo de questões exige a tarefa de não reduzi-lo em sua objectualidade, a fim de que se possa ouvir a sua voz.

O primeiro convite ao leitor está na direção de pensar o outro em situação de sujeito pesquisado. O outro aqui, a priori , é o interlocutor do pesquisador, aquele a quem ele se dirige em situação de campo (que pode ser o mais diverso possível) e de quem ele fala em seu texto. Amorim (2001, p. 12) chama a atenção para o fato de que “[...] do outro lado, há um sujeito que fala e produz... Não há escrita criadora sem alteridade entre autor e locutor. Trata-se da distinção fundamental entre aquele que escreve e aquele que está escrito” .

A pesquisa é sempre a busca do encontro com outro. Para a autora, “[...] não há trabalho de campo que não vise ao encontro com um outro, que não busque um interlocutor” (Idem, p.16). O que motiva a prática da pesquisa são inquietações internas acerca de determinada temática e, por si, só podemos considerar o imbricamento entre aquilo que pertence ao sujeito pesquisador e a realidade que lhe é posta e o mobiliza, por isso, esse imbricamento aparece-lhe como um problema de pesquisa.

Assim, cada momento de encontro, de fala e escuta é único, acontece ali uma interação entre o entrevistador e o entrevistado, a qual ocorre diferenciadamente para cada indivíduo, uma vez que se lida com pessoas diferentes, em ambientes diversificados, e esse momento de partilha e descobertas é singular. Dessa forma, o resultado dessa interação é único em cada momento. Para Bleger (1974, p.20), “Cada situação humana é sempre original e única: portanto, a entrevista também o é. [...] Esta originalidade de cada sucesso não impede o estabelecimento de constantes gerais, a saber, das condições que se repetem com mais freqüência” .

Trabalhar com narrativas é sempre um convite ao mergulho na história do outro. A experiência comporta um trabalho de elaboração do que é vivido, cujo sentido se completa ao ser comunicado, transmitido. A elaboração e a transmissão da experiência integram-se na tradição oral das narrativas, que se consolida num tempo lento, atravessado pelos sucessivos atos de narrar, por meio dos quais a experiência sedimenta-se (SCHMIDT, 1991). Com base no pensamento de Benjamin (1936 apud SCHMIDT, 1991), pode-se considerar, num certo sentido, a narrativa uma forma artesanal de comunicação, em que a matéria-prima trabalhada é a experiência: do narrador, que mergulha na coisa narrada,Page 410na sua própria vida, para, em seguida, transmiti-la, e do ouvinte, que assimila a coisa narrada à sua própria experiência. Mediante as narrativas, pode-se identificar o aspecto vivencial de cada sujeito, que é único e, por isso, uma experiência singular.

Segundo Schmidt (1990), é na tradição oral que circulam as narrativas, desde os tempos mais antigos, que se constituem numa espécie de “recolhedor da experiência coletiva”, e referem-se a dois aspectos importantes:

[...] o primeiro diz respeito à comutação dos lugares de ouvinte e narrador, tendo como fundamento a experiência. A tradição dos relatos encerra “os critérios que definem uma tríplice competência – saber-dizer, saber-ouvir, saber-fazer – em que se exercem as relações da comunidade consigo mesma e com os que a cerca. [...]” O segundo aspecto refere-se ao modo como as narrativas se apresentam, tanto em sua dimensão utilitária quanto em sua dimensão fantástica (p.06).

Segundo a autora, a narrativa insinua um saber que só se desvela no trabalho de recepção e interpretação do ouvinte, ou seja, o ensinamento só é ensinamento, à medida que é acolhido pela experiência do ouvinte, pois, fazendo circular a palavra, concedendo a cada um e a todos o direito de ouvir, de falar e de protagonizar o que é vivido e sua reflexão sobre ele, a comunicação oral conecta cada um à sua experiência, à do outro e à do antepassado, amalgamando o pessoal e o coletivo. Schmidt sugere que, como resultado de um trabalho coletivo cujo tempo consumido não conta, a narrativa acolhe a sabedoria e a existência vivida, naquilo que tem de essencial e inesquecível. Inserida na tradição oral, sua permanência no mundo depende da presença de uma comunidade de ouvintes e de um narrador que, como sugere Benjamin (1936), teria como tarefa “[...] trabalhar a matéria-prima da experiência – a sua e a dos outros – transformando-a num produto sólido, útil e único” (apud SCHMIDT, 1991, p.212).

A importância da questão da narrativa como escolha de procedimento de coleta de dados dá-se, à medida que tal instrumento confere ao sujeito narrador um lugar de destaque nesse momento de encontro.

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Ele é o ator principal dessa fala, diferentemente de o que ocorre na utilização de questionários e em entrevistas com perguntas fechadas ou dirigidas, feitas pelo pesquisador, quando o sujeito entra no universo de questões do pesquisador, de forma mais passiva. Não que haja algum problema com esses instrumentos de coleta de dados, ao contrário, eles se aplicam a determinados estudos. Chama-se a atenção para a medida na qual a utilização de alguns métodos, técnicas e projetos dá-se no sentido de se pensar como tratam a questão da alteridade. Na prática, como tratar o outro, como encontrá-lo, como fazê-lo falar, como se fazer ouvir, como compreendê-lo, como traduzi-lo, como influenciá-lo ou como se deixar influenciar por ele são questões que permeiam, a todo instante, o pesquisador. Para essas perguntas, não há regras, nem método. Há de se pensar que existem dois tipos de diálogo: aquele que o pesquisador deve fazer com o sujeito colaborador, daí vem a necessidade de estabelecer de fato uma relação dialógica, e aquele que o pesquisador estabelece com a comunidade científica, na qual a comunicação é feita com seus pares, em geral, de forma monológica.

Estamos num momento em que a academia brasileira redescobre a oralidade e suas técnicas de registro e análise vão muito além da realização de entrevistas. Bom Meihy (1996) refere que a história oral, como tributária da história pública, remete-se ao leitor comum, vigorando o princípio que privilegia o social...

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