A culpabilidade compartilhada como princípio mitigador da ausência de efetivação dos direitos humanos fundamentais nos delitos patrimoniais

AutorCláudio Alberto Gabriel Guimarães
Páginas213-220

Cláudio Alberto Gabriel Guimarães. Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduado em Direito pela UFMA. Especialista em Direito, Estado e Sociedade pela UFSC. Especialista em Magistério Superior pelo Centro Universitário do Maranhão UNICEUMA. Atualmente é professor titular do Centro Universitário do Maranhão - UNICEUMA, das Escolas Superiores dos Ministérios Públicos do Maranhão e Santa Catarina e Promotor de Justiça do Estado do Maranhão.

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Delinear o horrível quadro dos crimes, triste tarefa para minha pluma. À vista de tantas baixezas, covardias, maldades, traições, barbáries e atrocidades de que são capazes os homens, que alma honrada não se enche de indignação! Que alma sensível não se estremece de espanto! Entretanto, é mais horrendo o quadro de iniqüidades cometidas ao amparo do sagrado nome das leis! Não falemos aqui da câmara ardente, da câmara estrelada, do conselho terrível (vingativo) e de tantos outros tribunais de sangue que fizeram em outras ocasiões estremecer a natureza1.

1 Considerações Iniciais

Zaffaroni (2000, 2003) atribui a Jean Paul Marat, médico e jornalista nascido na2 e que foi um dos grandes artífices da Revolução Francesa, a gênese das idéias sobre a co-culpabilidade, aqui denominada de culpabilidade compartilhada3.

Passados mais de dois séculos as idéias de Marat ganharam adesão e paulatinamente estão a se transformar em princípio informador da aplicação da dosimetria penal, assim como, ainda timidamente, em causa impeditiva da punibilidade.

Já é bastante considerável a moderna doutrina que está a aprofundar os estudos e discussões acerca do tema, tendo o presente texto a preocupação, mais que exaurir o assunto, de indicar ao leitor a farta bibliografia disponível sobre o mesmo.

Ademais, atentos a tais inovações, e objetivando uma expansão da aplicação do princípio, temos que o caminho para o alcance de tal objetivo passe pela investigação dos limites da lei no âmbito de sua efetividade, melhor explicando, necessário que se confronte o alcance das normas que deliberam sobre direitos e garantias fundamentais e o alcance das normas punitivas.

É fato inconteste que a lei não pode ser cumprida de maneira intermitente4, ao sabor de conveniências, sejam estas de qualquer natureza, vez que a legalidade – para que se concretize o Estado de Direito – deve ser total, não se podendo admitir que apenas parte do ordenamento seja cumprido.

Na esfera do Direito Penal as intermitências acima referidas causam danos irreparáveis à configuração do Estado Democrático de Direto, devendo, tanto quanto possível, de imediato, serem reparadas, haja vista não ser razoável que o primeiro contato do cidadão com o Estado se dê na seara do Direito Penal e não no amplo campo do Direito Constitucional, com a efetivação de seus direitos fundamentais, ali elencados e, portanto, reconhecidos.

É, pois, no amplo campo principiológico que a discussão trazida a lume deve ser travada.

Feitas tais considerações, é fácil perceber que se busca atrelar a culpabilidade compartilhada à ineficiência estatal em prover os cidadãos de seus direitos fundamentais básicos, ou seja, intenta-se desenvolver argumentos científicos que possibilitem dar maior concretude à aplicação do instituto comoPage 214 forma de observação e preservação dos referidos direitos e, por via de consequência, de resgatar o verdadeiro sentido da até agora controvertida expressão “Estado Democrático de Direito”.

É este o desafio do presente texto.

2 Da Legitimação do Jus Puniendi Estatal

Partindo-se dos escritos contratualistas5, assim como dos influxos destes, justifica-se a existência do Estado em razão da necessidade de manutenção de uma convivência harmônica entre as pessoas que compõem o corpo social, convivência esta que tem por ponto de referência o bem comum6.

Em síntese, cabe ao Estado a manutenção da paz e da harmonia social, que será alcançada pela via da disciplina ou controle social, cujo principal instrumento é o direito legislado7.

Isto posto, afirmam os estudiosos da teoria do Estado, que todos os meios devem estar disponíveis para o alcance de tal fim, desde que legítimos – e neste ponto cria-se uma perigosa sinonímia entre legalidade e legitimidade –, credenciando-se, então, o Direito Penal, como o meio mais extremo para tal desiderato8.

A partir deste ponto do pensamento iluminista, iniciaram-se, de forma sistematizada, a elaboração de teorias que legitimassem a aplicação das punições aos seres humanos, o que, para efeitos de facilitação pedagógica, pode ser sincronicamente traçado como o desenvolvimento das teorias de cunho retributivista, cujos maiores expoentes foram Kant e Hegel, até as teorias funcionalistas – prevenção geral positiva –, cujos mais conhecidos representantes no Brasil são Gunter Jakobs e Claus Roxin9, sendo desenvolvidos nesse interim, isolada ou concomitantemente, estudos teóricos sobre as teorias da intimidação, neutralização e ressocialização, com alguns autores tendo optado pelo sincretismo teórico, criando as teorias mistas.

Não obstante o esforço teórico desprendido, entendemos que todas as teorias que tentam legitimar o jus puniendi estatal podem ser facilmente infirmadas em razão de um fato muito simples, qual seja: são apriorísticas, isto é, buscam legitimação a partir de um fato preconcebido e irrefutável, o delito cometido.

As teorias da pena jamais suscitaram qualquer discussão sobre as razões de escolha de determinados comportamentos para figurarem como tipo penal, assim como, nunca discutiram, de forma séria, as relações entre violência criminal e violência estrutural, prevalecendo, isto sim, como teoria de base fundamental do direito de punir a longeva – e absolutamente defasada – ideologia da defesa social10.

Existe, pois, de forma inconteste, um enorme déficit de legitimação no universo punitivo do Estado, aproximando-o, em pleno século XXI, muito mais do modelo Leviatã de Thomas Hobbes que do Estado Constitucional e Democrático de Direito, tão propalado em nível abstrato pela maioria da doutrina afeta ao tema.

Desta feita, tomando-se por referência a dicotomia existente entre ambos os tipos de violência – criminal e estrutural11 –, imperioso que sejam elaborados outros fundamentos para o exercício do poder punitivo, que lhe propiciem um mínimo de legitimação, devendo, para tanto, serem levadas em conta, de forma inexorável, as intermitências legislativas, ou seja, a aplicação de apenas parte do ordenamento jurídico pelo Estado.

Antecipando-se à prática do fato típico, que desencadeia, no espaço de seleção dos vulneráveis, o jus persequendi e o jus puniendi estatal, devem ser analisadas as possibilidades de igualdade dos pontos de partida12, melhor explicando: para que Estado possa punir de forma justa e legítima, necessário se faz que todos os cidadãos tenham tido, no ponto de partida, as mesmas oportunidades. Ratificamos, o cidadão não pode ter como primeiro contato com o Estado o banco dos réus em um processo criminal.

A igualdade dos pontos de partida pode ser entendida como igualdade de oportunidades, ou seja, todos devem ter amplo acesso aos direitos fundamentais que se corporificam na concretização da dignidade da pessoa humana desde o início da vida.

É de fundamental importância que se reconheça que todos os cidadãos devem ter direito a uma família estruturada, na qual o acesso, desde o início da vida – ratificamos –, a um nascimento e desenvolvimento dignos, e, posteriormente, ao ensino fundamental, ensino médio, ensino profissionalizante, ensino superior, todos de qualidade, devem ser disponibilizados pelo Estado, para que as escolhas possam ser feitas, principalmente, no que pertine ao pacto da legalidade, como cidadãos aptos a fazerem tal escolha13.

Assim sendo, moradia, saúde, alimentação, educação e trabalho são direitos humanos fundamentais aos quais todos, sem exceção, devem ter alcance, em todas as fases da vida, para que a igualdade dos pontos de partida seja preservada e, desse modo, o Estado possa exigir os respectivos deveres de quem teve garantidos tais direitos.

3 O Direito Penal apesar do Direito Penal

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Com comprovação empírica reiterada ao longo de inúmeras pesquisas acadêmicas14 nas mais variadas áreas de investigação científica, a seletividade, a estigmatização e o funcionamento quase que absolutamente simbólico do sistema penal, assim como e, consequentemente, a inalcançabilidade das funções declaradas creditadas às penas, acabam por demonstrar o total fracasso do Direito Penal enquanto forma de controle social, ou, pelo menos, alertam para o fato de que tal tipo de controle social não é o mais apto para disciplinar as relações que permeiam a vida do e no planeta15.

Em razão do que acima exposto, chamando atenção para o fato de que o Direito Penal não pode ser considerado como o principal meio de controle social, os criminólogos críticos têm desenvolvido trabalhos no sentido de se reconhecer a utilização do direito punitivo apesar do direito punitivo, ou seja, a utilização do cárcere apesar do cárcere16, enaltecendo o careáter subsidiário do Jus Puniendi estatal, assim como, fortalecendo a idéia de um Direito Penal mínimo e garantista17.

Em primeiro lugar, na tabela das prioridades sociais, devem figurar os Direitos Humanos, preferentemente antes que o direito punitivo seja chamado a intervir, vez que com os direitos fundamentais sociais18 sendo efetivamente reconhecidos e implementados19, ao controle sócio-penal restariam apenas as condutas que efetivamente põem em risco a estabilidade...

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