IDENTIDADES NARRATIVAS E PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO: CRUZAMENTOS CONCEITUAIS POSSÍVEIS APÓS A MORTE DO SUJEITO

AutorCássio Bruno de Araujo Rocha
Páginas25-44
GÊNERO|Niterói|v.19|n.1| 25|2. sem.2018
IDENTIDADES NARRATIVAS E PERFORMATIVIDADE DE
GÊNERO: CRUZAMENTOS CONCEITUAIS POSSÍVEIS APÓS A
MORTE DO SUJEITO
Cássio Bruno de Araujo Rocha1
Resumo: O artigo investiga cruzamentos conceituais possíveis entre as noções de
identidade narrativa, conforme pensada por Ricoeur, Velleman e MacIntyre, e de
performatividade de gênero, proposta por Butler, em meio à ambiência filosófica
da crise (ou morte) do sujeito cartesiano na pós-modernidade. Este cruzamento
tenta abrir um novo caminho para as escritas de histórias sobre os gêneros
pautadas no seu fazer narrativo ao longo do tempo, entendendo os gêneros
como construções culturais que se fazem por meio das ações e interpelações
performáticas feitas pelos agentes e por eles sofridas – as quais são representadas
pelo historiador através da narrativa que ele compõe.
Palavras-chave: identidade de gênero; identidade narrativa; performatividade de gênero.
Abstract: This paper investigates possible conceptual crossings between the
notions of narrative identity, as thought of by Ricoeur, Velleman and MacIntyre,
and gender performativity, proposed by Butler, in the midst of the philosophical
ambience of the crisis (or death) of the cartesian subject in the postmodernity.
This crossing is an attempt on openning a new way of writting gender’s
histories guided on its narrative making through time, understanding gender as
cultural constructions that make themselves by the performativeactions and
interpelations made by the agents and by them soered – which are represented
by the historion through the narrative that he composes.
Key-words: gender identity; narrative identity; gender performativity.
Este artigo objetiva analisar as possibilidades de cruzamentos entre os
conceitos de identidades narrativas e de performatividade de gênero a partir do
contexto teórico da suposta morte do sujeito moderno decretada pelas filosofias
pós-modernas. Este cruzamento é uma tentativa de abrir um novo caminho para
a escritas de histórias sobre os gêneros pautadas no seu fazer narrativo ao longo
do tempo, entendendo os gêneros como construções que se fazem por meio das
ações e interpelações performáticas feitas pelos agentes e por eles sofridas – as
quais são representadas pelo historiador através da narrativa que ele compõe.
Parte-se da hipótese de que tal cruzamento é possível devido à relação
1 Doutorando em História Social da Cultura no Programa de Pós-graduação em História da Universidade
Federal de Minas Gerais. E-mail: caraujorocha@gmail.com.
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dialética que a identidade narrativa mantém com a teoria da ação, conforme
sugerem Alasdair MacIntyre e Paul Ricoeur. Este último entende que a narrativa
põe as ações em contato com sua dimensão ética (trazendo à baila a questão
da responsabilidade de cada um por suas ações em um campo ético-moral)
(RICOEUR, 2014, p.167). Deste modo, a hipótese inicial pode ser aprofundada
pelo entendimento de que a narrativa composta pelo fazer-se performativo
do gênero tem (ou deveria ter, se se pretende subversiva) como fio condutor
ou princípio de coerência o cuidado de si para uma estética da existência – no
sentido deste conceito apresentado por Michel Foucault.
Como foi dito, esta investigação insere-se no contexto filosófico dos debates
acerca da categoria do sujeito. Entre o sujeito moderno e aquelas filosofias que
o querem morto. Ou seja, em meio à crise do sujeito moderno. De modo que
é preciso um desvio por essa ambiência para melhor entender as conexões da
investigação aqui esboçada.
Em primeiro lugar, o que se entende, neste trabalho, por sujeito moderno
é aquele consagrado inicialmente por Descartes com a célebre máxima do
Cogito ergo sum. O filósofo francês instaurou uma revolução no pensamento
ocidental, ao inverter a prioridade antes dada às coisas, e não à razão, na dinâmica
do conhecimento. Descartes inaugura a filosofia moderna, ao tornar o sujeito
o próprio fundamento do conhecimento, não só seu lugar. Sendo fundante, o
sujeito pode dispor de todas as coisas no universo, tudo é seu objeto, não há nada
que não seja uma representação de sua consciência (DESCARTES, 1973).
Birchal (2007) sintetiza algumas características principais do sujeito de
Descartes. Segundo a filósofa, o sujeito mantém uma auto posição de si, tem
certeza de si próprio -a sua existência é a única verdade que resiste ao poderoso
método da dúvida cartesiana – consequentemente, o sujeito é a fundação de todo
conhecimento. O sujeito é racional e puro pensamento (não tem corporeidade),
é substancial (a coisa pensante segundo o Discurso do Método), universal, tem
atividade (é o ato de pensar), é transparente a si mesmo, tem total liberdade e
é nitidamente distinto de tudo que lhe é exterior (BIRCHAL, 2007, p. 16-18).
A revolução cartesiana marcou a transição de uma concepção antiga e
medieval segundo a qual o ser humano ocupava um lugar desde já determinado
na ordem cósmica ou divina para uma concepção moderna. Nesta, o homem tem
uma centralidade ideal e é soberano sobre a totalidade do seu ser.
Descartes rejeitou inteiramente a noção de uma ordem cósmica que
incorporaria as Ideias (segundo uma noção platônica), considerando-a um modo
teleológico de pensar, abandonando toda teoria de ima razão ontológica. Para o
filósofo francês, o universo deveria ser entendido mecanicamente pelo método
científico proposto pioneiramente por Galileu. Esta mudança envolveu também
uma mudança radical na antropologia, transformando o que se entende por
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