A ascese da Imagem Poética no encontro Jorge de Lima e Murilo Mendes

AutorLuciana Tiscoski
Páginas28-61
BOLETIM DE PESQUISA NELIC
V° 9 - N° 14
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DO COMEÇO AO FIM DO POEMA
Alberto Pucheu
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Artigos
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LucianaTiscoski
2010.1
Artigo – A ascese da Imagem Poética – Luciana Tiscoski Boletim de Pesquisa NELIC – Edição Especial V. 3 2010.1
Esse ensaio se propõe à apreciação do encontro poético
de Murilo Mendes e Jorge de Lima, a partir da afinidade de
ambos com a filosofia do essencialismo do pintor Ismael Nery e
com a ‘aventura surrealista’. A direção mística das obras de
Murilo e Jorge guarda estreita relação com um cristianismo
ligado ao desejo de ascese e de busca de uma poesia que
possibilitasse ao homem moderno a extrapolação dos limites
estritamente racionais que o relegam ao caos e ao desencanto.
E assim como estabelecido nas prerrogativas do Surrealismo, o
caminho do catolicismo de Ismael, Murilo e Jorge também
propunha a via onírica ou essencial para a transformação do
homem e do mundo. Esse caminho de ascese está prefigurado
no lema Restauremos a poesia em Cristo, que deu origem à
obra conjunta Tempo e Eternidade, de 1935.
Longe da intenção de restringir suas trajetórias poéticas
ao âmbito do movimento surrealista, o que seria totalmente
descabido em se tratando de poetas de tão extensa e
diversificada obra, o trabalho sugere a influência determinante
do Surrealismo no que se refere ao exercício de uma
transcendência pela palavra. E desta, pela imagem. A
fascinação de ambos pelas artes plásticas e a crença em uma
ascese do poeta com sua escrita, acaba por conduzi-los a uma
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Artigo – A ascese da Imagem Poética – Luciana Tiscoski Boletim de Pesquisa NELIC – Edição Especial V. 3 2010.1
recriação da linguagem poética fundada na imagem. A imagem
reivindicada pelos surrealistas extrapola os limites da realidade e
permeia de liberdade a expressão dos desejos latentes do
homem aprisionado em sua consciência. Assim como o
Surrealismo retomou a tradição da mitologia, do ocultismo e do
hermetismo, assim como deu amplo espaço de atuação na arte
às novas idéias que vinham da psicanálise, assim como
recuperou antigos temas bíblicos e das mais variadas religiões,
ainda que muitas vezes como feroz crítico, os poetas tratados
neste ensaio fizeram este mesmo traçado quando de seu
encontro e nos muitos diálogos que se travaram entre suas
obras.
Uma religiosidade calcada numa já desesperança no
homem guiado pela razão e no mundo guiado pela ciência, uma
religiosidade alicerçada pela crença no poeta como Cristo, no
poeta como agenciador de uma nova realidade fundada na
busca da transcendência, esta a aventura de Tempo e
Eternidade. E apesar de a compilação temática dos poemas de
Tempo e Eternidade ser considerada por grande parte da crítica
literária como ‘menor’ frente à extensa e multifacetada obra de
ambos os poetas, convém situá-la num espaço de leitura do que
viria a ser o roteiro poético que culminaria em Invenção de
Orfeu, de Jorge de Lima e em As metamorfoses e Mundo
Enigma, de Murilo Mendes.
No interregno, em seguida à experiência de Tempo e
Eternidade, é percebida a nítida bifurcação em suas trajetórias
poéticas. Como qualquer encontro entre poetas fortes, cada um
guarda sua verve particular, que pode ser por vezes quase
antagônica ao outro. Murilo segue com a publicação de Os
quatro elementos, de 1935, e A poesia em pânico, de 1936,
reforçando sua lírica particular com os característicos contrastes
e as analogias. Citando Manuel Bandeira, o Murilo “Da poesia
em Cristo / E em Lúcifer / Antes da queda” trabalha com a
“interpenetração dos planos da realidade e da imaginação”,
abstraindo tempo e espaço. Seu catolicismo é dialético.
Em Jorge de Lima, a poesia prossegue numa militância
católica que prefigura a errância humana, o poeta é súdito de
seu amor em Cristo1 na obra de 1938, A túnica inconsútil
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1 Não me refiro aqui, em absoluto, ao poeta como dogmático. A religião em
Jorge de Lima, e o catolicismo, propriamente dito, davam lugar ao
questionamento, aos conflitos e às contrariedades, ao sincretismo, ao
erotismo e demais sentimentos ‘terrenos’, bem como aos sentimentos de
ascese. Refiro-me sim à estilística de cunho litúrgico e ao tema bíblico que
perpassa sua obra mais nitidamente após as fases parnasiana, regional e
modernista. Utilizo-me das palavras de Murilo Mendes sobre o problema da
conciliação entre ‘a chamada’ realidade e a transcendência: “Jorge de Lima
não evitou o problema, antes o atacou de frente, revestindo-se tal operação
de particular coragem, dado o fundo pagão da sua natureza. Assim agindo

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