Impactos da inteligência artificial nos fundamentos da propriedade intelectual

AutorÂngela Kretschmann
Páginas615-645
IMPACTOS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NOS
FUNDAMENTOS DA PROPRIEDADE INTELECTUAL
Ângela Kretschmann
Professora Visitante do Curso de Doutorado da UFPR, Direitos Intelectuais e Sociedade
da Informação (https://www.gedai.com.br/seminarios-de-mestrado-e-doutorado-
-sobre-direito-da-sociedade-informacional/). Licenciada em Física (PUCRS, 2021).
Pós-doutora pela Westfälische Wilhelms-Universität Münster, Alemanha (ITM, 2012).
Pesquisadora Sênior da Universidade de Brasília – UnB (2017-2019). Professora
Honorária Visitante da Universidade de Münster, para o ano de 2018 (https://www.
itm.nrw/organisation/gastwissenschaftler/angela-kretschmann/). Pesquisadora de
pós-doutoramento da PUCRS desde 2020, e do GEDAI, da Universidade Federal do
Paraná, a partir de 2018 (http://www.gedai.com.br/equipe/). Doutora em Direito pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2006). É mestra em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1999). Integra o Quadro de Árbitros da
Câmara de Arbitragem da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (CArb-ABPI),
do Centro de Solução de Disputas em Propriedade Intelectual (CSD-PI, da ABPI).
Advogada em PI. E-mail: juridico@kre.adv.br
Sumário: 1. Introdução – 2. Os controversos fundamentos da propriedade intelectual – 3. Tratando
iguais os diferentes? – 3.1 Criação com auxílio de IA – e em coautoria – 3.1.1 Criação com auxílio
de IA – 3.1.2 A IA como coautora – 3.2 Um produto de IA gerado de modo independente – 3.3
O resultado criativo que indica autoria de terceiros (beatles, rembrandt) – 4. Impactos da IA na
propriedade intelectual – 5. Proteção de criações geradas por IA: custo ou benefício social? – 6.
Considerações nais – 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O pensamento contemporâneo, ou pós-moderno, ou da modernidade líquida1
– o aqui, e agora – é basicamente atormentado pela conf‌luência de duas revoluções
científ‌icas: o advento da Física moderna, em f‌inais do século XIX, deixando claro
que as partículas macroscópicas eram bem compreendidas pela Física clássica; e
a Física quântica, que trouxe a compreensão do mundo subatômico sacudindo e
desestruturando certezas e paradigmas até então consolidados pela modernidade.
Essa Física criou a bomba atômica e também nos fez entrar numa crise ecológica sem
precedentes, com a percepção de que o conhecimento científ‌ico deve ser aplicado de
modo sustentável, garantindo bem-estar a um maior número de pessoas, e evitando
a sua exclusão.
O sistema de proteção às criações intelectuais, conhecido como “Propriedade
Intelectual” foi construído com base em um mundo mecanicista. O uso degradado
da razão, manifestado por Morin, atinge de modo exemplar a Ciência do Direito, e
mais exemplarmente a Propriedade Intelectual – pois as ameaças mais graves nas
1. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Zahar, Rio de Janeiro, 2001.
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quais incorre a humanidade, ligadas a esse progresso cego e incontrolado que redu-
zem a ideia de desenvolvimento a crescimento econômico e científ‌ico – apartado
da ref‌lexão do que é “bom” ou o “bem” (aristotélico, sim) para o ser humano. Com
isso os bens intelectuais são reduzidos a bens de consumo – unindo as duas grandes
abstrações da ciência moderna, a tecnologia e o mercado.
Sem dúvida nenhuma a Ciência se desenvolveu de forma impressionante, e no
início do século XX os efeitos dos primeiros descobrimentos de Max Planck sobre
a quantif‌icação da energia, e o modelo do átomo de Bohr levaram os cientistas a
uma nova revolução científ‌ica. Já em f‌inais do século XIX, início do século XX, a
revolução tecnológica dissolveu as certezas do determinismo, trouxe a incerteza,
com a segunda lei da termodinâmica e a física quântica. A ciência não era mais
certeza, e a própria busca de “uma verdade” f‌ica sendo impossível, diante de um
universo tão complexo.
A separação entre sujeito e objeto desde Descartes só começou a se revelar danosa
no século XX, e as profundas ref‌lexões f‌ilosóf‌icas que foram travadas por Thomas
Kuhn, Feyerabend, Karl Popper, entre outros, deveriam ter chegado ao direito de
propriedade intelectual de uma maneira mais concreta2. É que o pensamento mu-
tilador, e simplif‌icador, separou as ciências, especializou-as, a ponto de se negarem
ao diálogo. Não seria por isso que encontramos tantas anomalias na Propriedade
Intelectual? E tanta crise em seus fundamentos?
Às vezes ainda duvidamos se a mecânica quântica trouxe de fato mais respostas
do que dúvidas. Mas ao menos nos trouxe uma liberdade, a liberdade do encaixe per-
feito e determinista do mundo iluminista, no contexto moderno, e a liberdade para
estar certo ao não entender alguma coisa, a partir das descobertas da física quântica,
a teoria marcada como impossível de ser compreendida3
Entretanto, implicações jurídicas mais profundas, que deveriam ter suce-
dido as revoluções científ‌icas, não vieram. Elas trouxeram esclarecimentos que
deveriam ser levados em conta, acerca de fatos, concepções sobre o quê pensamos
que algo é, quando não é, a exemplo da questão da obra criativa, da autoria e da
originalidade. Nada do que se desenvolveu em outros campos, como a Física, a
Psicanálise, a Ecologia, a Linguagem – e a Hermenêutica – pareceu importar ao
Direito da Propriedade Intelectual, que tropeçou no século XVII e parece que não
se levantou mais.
Este texto apresenta uma breve ref‌lexão sobre o desconforto da Propriedade In-
telectual na atualidade, diante dos fundamentos cuja legitimidade são cada vez mais
2. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 15.
3. “Yes! Physics has given up. We do not know how to predict what would happen in a given circumstance, and we
believe now that it is impossible – that the only thing that can be predicted is the probability of different
events” (FEYNMAN, Richard P. LEIGHTON, Robert B., SANDS, Matthew. The Feynman Lectures of Physics.
California Institute of Technology. Assison-Wesley P Company, California, 1963. 6. ed. 1977, p. 1-10).
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