Nota fiscal paulista e tributação do imposto sobre a renda: presunção 'emprestada' no direito tributário brasileiro e suas limitações constitucionais

AutorFlorence Haret
CargoDoutora pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Universidade de São Paulo/Brasil
Páginas96-103

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1. Presunção no direito tributário

Para a Filosofia clássica, a presunção, associada à metáfora, é uma noção substitutiva, originária de um juízo antecipado e provisório, criado mediante um efeito de espelhamento e identificação entre uma coisa e outra, e produto de uma interação específica de significados heterogêneos, garantindo assim uma nova organização conceitual. Foi a partir de ideias como essa, trazidas de outros domínios do conhecimento humano, que a Teoria Geral do Direito, buscando definir a presunção segundo o papel que desempenha no sistema jurídico, identificou-a como enunciados jurí-dico-prescritivos que têm sempre um quan-tum de indutivo, tendo em vista que é um juízo dependente da experiência: fixa suas bases no real, admitindo um fato por outro, como se fossem um só, ou os mesmos.

Ora, de um ponto de vista dogmático, toda presunção é norma que associa dois enunciados, estabelecendo correlação lógica - e jurídica - entre eles, o que nada mais significa do que firmar a causalidade pres-critiva da mesma. São verdadeiros entime-mas, isto é, deduções silogísticas ou silogismo truncado, mas que, uma vez inseridos no sistema, são fortes o suficiente para objetivar uma dada ocorrência factual.

O raciocínio presuntivo segue uma forma de construção: homogênea em todos os tipos presuntivos. Constitui-se mediante o entrelaçamento de uma série de enuncia-

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dos que, cumulativamente, instituem a presunção do fato. Toda presunção requer, necessária e impreterivelmente, dois níveis de relacionamento objetal; e todo objeto pode ser repartido em imediato e dinâmico. Expliquemos cada um deles.

No primeiro nível presuntivo, dá-se a relação entre fato presumido e fato(s) presuntivo(s). Este figurando como objeto dinâmico daquele, seu objeto imediato. Presume-se sempre numa generalidade organizada mediante raciocínio indutivo. Este primeiro nível associativo, para ser conhecido do direito, deve adquirir um segundo nível que o põe em forma de norma. Essa é a razão de o primeiro nível ser enunciado incompleto pertencente ao universo do social ou mesmo da moral. E, sendo linguagem fora do direito, não é propriamente presunção masprotopresunção, i.e., forma insipiente desse modo de raciocinar.

É no segundo nível objetal que as presunções assumem corpo de proposição jurídica para a ordem normativa. A composição do fato jurídico em sentido amplo depende do liame objetal de primeiro nível. Logo, fatos presuntivos e fato presumido só se tornam juridicamente relevantes quando reduzidos ao enunciado factual em sentido amplo e posto este último em relação com o fato jurídico em sentido estrito. Para simplificar a análise, experimentemos apresentar a presunção em termos gráficos segundo seus dois níveis objetais:

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É segundo este modelo que a presunção se apresenta em termos normativos para o direito, e no campo tributário inclusive. Vejamos bem que o raciocínio jurídico presuntivo é algo hermeticamente fechado. Parte de enunciados de fatos presuntivos X para alcançar o enunciado de fato jurídico em sentido estrito X, aquele antecedente da norma tributária exacional, esta podendo ser tanto a norma geral e abstrata, ou também conhecida como re-gra-matriz de incidência, quanto a norma individual e concreta, regra jurídica subsu-mida daquela. O âmbito conceitual é o mesmo X: partindo-se deles para neles concluir-se.

Essa relação de proximidade conceptual entre fatos presuntivos e fato jurídico em sentido estrito é o que distingue, juridicamente, presunção de ficção. Para o ra-ciocínio presuntivo ser válido, é imprescindível que entre estes enunciados factuais se mantenha coerência de sentido, de tal modo que se associem em face de similitudes primárias ou da essência do objeto. Quanto mais o fato jurídico em sentido estrito afastar-se dos fatos presuntivos, menor será o seu valor constitutivo de presunção, o que, por outro lado, a tornará cada vez mais próxima da ideia de ficção. Justamente essa distância conceitual é que produz esse efeito de irrealidade, de ausência de probabilidade, descaracterizando a presunção enquanto tal, tornando-a ficção. Nas presunções, a permanência forte deste liame entre fatos presuntivos e fato jurídico em sentido estrito é o que dá força constitutiva e de certeza jurídica às estruturas presuntivas, permitindo sejam usadas no domínio do direito tributário inclusive. A

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estreita relação conceptual entre fatos presuntivos e fato jurídico em sentido estrito é o vínculo que confere um fechamento síg-nico coerente ao raciocínio presuntivo, admitindo-o a partir daí como enunciados aptos a constituir fatos, verdades e certezas jurídicas.

Postos os fundamentos de uma presunção tributária válida no sistema jurídico no campo dos tributos, ensaiemos agora examinar outras figuras que fogem a estas regras conceptuais supracitadas, verificando sua admissibilidade na ordem posta.

2. Sobre afigura a que chamamos de "presunção emprestada"

O título deste item se inspira a partir da noção de prova emprestada no direito processual. A referida forma probatória diz respeito ao aproveitamento de prova produzida em outro processo para constituir novo fato em um novo ambiente litigioso. Dito de outro modo, a prova é elaborada em um processo, com determinados entes comunicantes, sendo utilizada, em outros momentos comunicacionais e novos exegetas, para fazer prova de outro fato em outra situação procedimental.1

Analogicamente à tal figura do âmbito do processo, a presunção emprestada é também um modo de...

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