Progresso e impureza: viajantes europeus descrevem a ocidentalização de cidades muçulmanas

AutorVera Chacham
Páginas26-48

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A o longo* do século XIX, as paisagens urbanas orientais vão ganhando, na literatura de viagens, um aspecto não somente decadente, mas também “antigo”. Os viajantes da segunda metade do século XIX herdam dos românticos as imagens da paisagem oriental “autêntica” e, a partir de Nerval, a ênfase na paisagem urbana e popular. Isso ocorre com especial clareza no Cairo, cidade oriental porque muçulmana, ao nordeste da África.

Contudo, esse olhar estético e nostálgico parece ser minoritário em relação à massa de narrativas de viagens ao Oriente da segunda metade do século XIX. Em grande parte, as narrativas de viagens acerca das cidades orientais serão conduzidas tranqüilamente pela idéia de um progresso trazido pelo Ocidente, que se projeta em imagens de possessão real ou simbólica do lugar. Aqui a idéia do velho Oriente, paralisado, imóvel, coloca-se em função da ocupação da cidade pelas formas urbanas da civilização européia, que fazem quase desaparecer, no texto e na cidade, o espaço genuinamente oriental. Este espaço, percebido como passado, não tem muito significado em um período em que triunfa a ideologia do progresso e ocorre o grande “boom” econômico e industrial do Ocidente. Esse é o caso da narrativa de Pierre Giffard, viajante que testemunha o fim da presença francesa no Egito após sua ocupação pelos britânicos em 1882. É também o caso de Antonin Thivel e George Ebers, mesmo que nestes últimos a paisagem urbana oriental possua certo interesse como fonte de conhecimento histórico e estético.

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Se nessa primeira abordagem o Cairo e Alexandria tornam-se espelhos passivos da civilização, em textos de viajantes como Eça de Queirós, Victor Fournel, Arthur Rhoné e outros, trilha-se um caminho mais ambíguo no que diz respeito à natureza desse progresso, do qual, antes do Cairo, Alexandria aparece como um caso doente. Alexandria torna-se fundamental ao discurso de vários viajantes, porque é possível estabelecer, através dela, um parâmetro, um padrão do inautêntico, da cidade em certa medida já corrompida pelo Ocidente, pelos valores ocidentais. Alexandria é a ponte para se mostrar a autenticidade do Cairo, o seu caráter verdadeiramente oriental.

São vários os olhares ocidentais sobre o Oriente. Mas, no momento em que o espaço ocidental se insere em cidades como o Cairo e Alexandria, os significados adquiridos pelo espaço e tempo orientais podem dificultar uma harmoniosa incorporação do Oriente ao ideal de mundialização da história ocidental.

Progresso, possessão: um discurso sem ambigüidade

Um dos pontos mais interessantes nas narrativas de viagens do século XIX, que no fim do século vão se tornando pretensiosamente mais objetivas e desencantadas, é não somente a sua inabalável crença na superioridade irrestrita do ocidente – da França, no caso dos viajantes franceses –, mas a franqueza , a dureza e quase transparência do discurso imperialista. Em viajantes como Pierre Giffard a narrativa é conduzida pelas mais extremas proposições nacionalistas, pautada pelo embate violento com as outras potências e pela quase inexistência, como sujeito histórico, do lugar em disputa – o lugar da viagem. Essa falta de dúvidas e disfarces torna mais surpreendente a presença de certa preocupação com a autenticidade dos lugares visitados, que aparece mesmo em narrativas comprometidas explicitamente com um ideal imperial.

A naturalidade com a qual se apresentam textualmente a dominação e a influência ocidentais é um produto típico do século XIX – século da ciência, da história, do progresso, da nação. Antes mesmo que a ideologia racialista se impusesse, no fim do século, como uma das formas de justificação do colonialismo, a própria ideologia do progresso revelase suficiente para a legitimação do expansionismo europeu.

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O ideal de progresso e o de sua expansão, eminentemente iluministas, adquirem um caráter determinista ao longo do século XIX. De um ideal algo impreciso e virtual o progresso transforma-se em uma certeza inabalável, e o progresso técnico e econômico, em sinônimo de civilização. E, ao passo que o tempo histórico é visto como linear e global, o “processo civilizatório” das nações não ocidentais é apenas o prosseguimento do progresso europeu. Nas narrativas de viagem esta idéia aparece nas imagens de continuidade espacial.

A idéia de necessidade desta continuidade espacial e temporal evolui com o imperialismo. Segundo Hentsh, a idéia de que as outras civilizações acabariam, de uma forma ou de outra, reunindo-se ao Ocidente estava provavelmente implícita em Hegel, mas não era sua principal preocupação 1 . Ela é, contudo, explícita em Marx em suas observações sobre o papel da Inglaterra na cruel mas necessária modernização da Índia 2 . É verdade que o marxismo não é o alimento teórico das narrativas de viagem do fim do século XIX; não há dúvida, contudo, de que ele se encontra dentro da perspectiva que situa a expansão e a possessão coloniais na linha de um desenvolvimento histórico positivo e determinado 3 .

Bem longe dali, a impossibilidade de os outros lugares – colônias, possíveis colônias – progredirem por si sós é tida como inata, racial.

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Desde Buffon, o julgamento de valor e a descrição pejorativa de outros povos já se encontravam sob a proteção de um discurso científico; desde Voltaire, a descontinuidade do gênero humano é explícita, sua origem sendo plural e não única; desde ambos, a civilização européia é a medida quer para a história natural do homem, quer para a história da sua cultura. O que ocorre de novo nas teorias racialistas do século XIX é não somente uma adesão ao poligenismo, de um lado, e uma classificação das raças (dos corpos) na linha de Buffon, de outro, mas uma visão mais determinista da raça na história humana.

Para Renan, por exemplo, havia uma incapacidade de progresso e civilização, isto é, uma natural imobilidade nas “raças inferiores”. A civilização era, assim, inata à raça branca, e seu domínio sobre as outras raças era, portanto, natural: “A conquista de um país de raça inferior por uma raça superior que nele se estabelece para governá-lo não possui nada de chocante” 4 . Para Renan as raças eram identificadas às classes, isto é, cada povo teria sua função na economia mundial, ou na harmonia universal. Por outro lado, dizendo respeito provavelmente a uma situação de conquista, seria possível para Renan a instituição de um projeto eugênico de melhora de certas raças (com a exceção das raças mais baixas, que seriam “exterminadas” devido ao seu próprio imobilismo).

Diferentemente de Renan, Arthur de Gobineau não possuía projeto imperialista algum: sua filosofia da história é pessimista demais para tal. Violentamente oposto à idéia do progresso contínuo, inclusive no que diz respeito à história da raça branca, Gobineau não tem dúvidas de que os bons tempos ficaram para trás, e de que um dos índices mais claros da decadência ocidental era o advento da democracia. Mas sua visão da história como decadência fundamenta-se sobretudo na idéia de que, estando a raça branca no topo da hierarquia, e detendo caráter altamente dinâmico e um domínio sobre as outras raças, a mistura de raças torna-se inevitável. Isto, no seu entender, leva todas as civilizações à degradação e ao declínio. Apesar disso, Gobineau podia manifestar admiração por “outras” raças, contanto que fossem “puras”.

Tais teses racialistas não são, aqui, nossa principal referência para compreender os pontos de vista dominantes nas narrativas de viagem. Contudo, a lembrança da sua existência nos auxilia no entendimento de certas contradições e ambigüidades contidas nos textos.

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Pois se a raça é, para vários viajantes como para seus contemporâneos, uma das formas de “explicar” a inferioridade (ou atraso) de um povo, ela é também, curiosamente, uma ponte para o passado, a visão de uma paisagem ancestral, imutável, e por isso autêntica – mesmo quando se trata de raças não brancas e civilizações não ocidentais. A raça se confunde com o “gênio da nação”, com origem, com autenticidade, com pureza. E torna-se um ingrediente importante da paisagem exótica. Em certos momentos, a admiração pelo gênio nacional e pela pureza da raça convive com o ideal de progresso. Porém, a descrição final torna, em geral, secundários os valores da “autenticidade”, em relação à necessidade da intervenção ocidental.

Com efeito, é possível notar certa preocupação com a autenticidade mesmo na narrativa de um viajante como Antonin Thivel, espécie de peregrino moderno que, em 1880, escreveu L’Orient, tableau historique et poétique de l’Egypte , tendo em vista sobretudo a Terra Santa.

É certo que a sua grande preocupação era com a permanência do islamismo, para o autor o principal obstáculo ao progresso do Oriente: “Para se desenvolverem, os povos possuem o dever de seguir o impulso do seu próprio gênio.” Portanto, se o Egito deseja viver e crescer; ele não pode “[...] permanecer durante muito mais tempo sob o jugo do islamismo: é preciso que ele se livre do domínio muçulmano” 5 .

O gênio próprio dos povos, tão caro a Herder, aos românticos e às ideologias nacionalistas que se desenvolvem ao longo do século, deve ser aqui o motor da transformação do Egito, condição do seu desenvolvimento e inserção na civilização. Contudo, o islamismo não faz parte desse gênio, ele é exterior à sua identidade; ele é próprio da dominação otomana. O fato de a religião muçulmana existir havia mais de um milênio no Egito nada significava. Para o autor, não restavam dúvidas de que a solução para o futuro do Egito era entrar, de cabeça erguida, “[...] na via da civilização européia e sobretudo francesa, que leva à prosperidade” (p.59).

A civilização européia tem nesse discurso uma característica neutra, universal, embora o orgulho da civilização francesa esteja presente antes mesmo das preocupações religiosas...

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