A inconstitucionalidade da taxa de serviços administrativos cobrada pela suframa

AutorPaulo Victor Vieira da Rocha
CargoMestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), onde é monitor do Curso de Especialização em Direito Tributário. Pós-Graduado (Especialista) em Direito Tributário pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo
Páginas170-180

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1. Delimitação do problema

Em 15.12.1999 foi publicada a medida Provisória n. 2.007, convertida na Lei Ordinária n. 9.960, de 29.1.2000, com o fito de instituir dois tributos, dos quais, uma "Taxa de Serviços Administrativos", incidente sobre "o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição pela Superintendência da Zona Franca de Manaus - SUFRAMA" (art. 1o da citada Lei).

Como base de cálculo, a referida lei federal elegeu o valor do "internamento", ou seja, o valor da mercadoria ao ingressar na Zona Franca de Manaus, constante da Nota Fiscal. Inobstante a lei não especifique textualmente a base sobre a qual incide o tributo, o ato legal em comento contém Anexos, com tabelas de incidência progressiva da taxa em razão do valor das notas fiscais cujas mercadorias se internam na Zona Franca de Manaus.

O procedimento administrativo de internamento foi regulamentado pelas Instruções Normativas ns. 24/2001 e 242/ 2002, da Secretaria da Receita Federal, bem como pela Portaria n. 63, de 2001, do Superintendente da Zona Franca de Manaus, a qual, no caput de seu art. 13, determina o pagamento da taxa pela utilização total ou parcial do suposto "serviço público". Ademais, o citado dispositivo impõe, no parágrafo único, que, iniciado o procedimento de internamento, será devida a taxa, independentemente da situação cadastral do responsável, sendo também irrelevante a inexistência de fato de responsabilidade do contribuinte, que impeça a conclusão do feito.

Assim, os contribuintes sediados na Zona Franca de Manaus, ao adquirirem mercadorias ou insumos originários de outros estados-membros ou outros países, pa-

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gam uma taxa à SUFRAMA, por ocasião do ingresso desses bens, que varia progressivamente em função do valor das notas fiscais ou declaração de importação, conforme o caso.

Ocorre que este tributo viola frontal-mente diversas normas constitucionais, como o princípio da legalidade, a regra que veda taxas com base de cálculo típica de impostos, as regras de competência material, além de violar as regras gerais em matéria de legislação tributária postas pelo Código Tributário Nacional, em cumprimento ao art. 146, III, da Constituição de 1988.

2. A violação ao princípio da legalidade

A estrutura do comando vazado por uma norma jurídica caracteriza a sua espécie, como regra ou princípio, na trilha dos ensinamentos de Robert Alexy.1 Por outro lado, é possível admitir-se uma terceira espécie, não exatamente de norma jurídica em si, mas de postulado científico, como o da proporcionalidade na ciência do direito, nos moldes da teoria de Humberto Ávila,2 seguida por Eros Grau3 e, até certo ponto, por Ricardo Lobo Torres,4 embora Virgílio

Afonso da Silva diga tratar-se de uma regra da proporcionalidade.5

Enquanto regras jurídicas dizem exatamente o que (e em que medida) deve ser, princípios são mandamentos de otimiza-ção (Alexy) ou estados ideais de coisas (Ávila), ou seja, uma regra é cumprida ou não, enquanto um princípio é realizado dentro do possível ou não. Essa última espécie de norma (princípio), para ser cumprida, deve ter seu valor intrínseco realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas, representadas aquelas (possibilidades fáticas) pela necessidade e a adequação de medidas e normas, e essas (possibilidades jurídicas) pela proporcionalidade em sentido estrito em relação a outros princípios constitucionais eventualmente em conflito.6

Enquanto o princípio é norma cujo cumprimento se verifica pela realização mais ou menos efetiva da finalidade nele inserta, a regra contém um comando, um dever-ser objetivo, que não pode ser mais ou menos cumprido - a ordem é obedecida ou não.7

Desta feita, o art. 150,I, da Constituição da República e o art. 97,I, do Código Tributário Nacional - CTN, não expressam apenas uma regra, porque o legislador não determinou somente um dever-ser objetivo, no sentido de que a norma instituidora de um tributo precisar ter uma lei em sentido formal como veículo introdutor. Estabeleceu-se também um mandamento de oti-mização, pelo qual se deve buscar ao máximo a definição conceitual da hipótese de incidência tributária8 ou da regra-matriz de incidência9 na lei. Portanto, não obstante se

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tenha um dispositivo textual, a ele se atribuem duas normas distintas, uma regra e um princípio da legalidade.

Melhor explicando, norma não se confunde com dispositivo normativo. Norma é o comando, o conteúdo que o intérprete atribui ao texto normativo. Daí se afirmar que não se interpretam normas, mas textos. As normas não são objeto da atividade interpretativa, mas seu resultado. Assim, por ter sua existência consubstanciada nesse conteúdo, a norma pode ser resultado da interpretação de diversos dispositivos textuais. Por outro lado, um único dispositivo normativo pode dar origem a mais de uma norma. Daí afirmar-se não haver uma relação biunívoca entre dispositivo normativo e norma.10

Os dispositivos relativos à legalidade, constantes do art. 150,I, da Constituição e do art. 97, I, do Código Tributário Nacional, citados acima, são bons exemplos disso. Qualquer um deles, interpretado, resulta em duas normas referentes à legalidade, mas, estruturalmente distintas: uma regra e um princípio da legalidade.

Primeiramente, trata-se de regra que determina só poder ser instituído qualquer tributo por meio de lei ordinária, ou até complementar. Mas instituir é criar norma geral e abstrata que descreva um determinado evento material, situado no tempo e no espaço, vinculando a ele, como consequência, o surgimento de uma obrigação tributária, definindo seus sujeitos passivos, bem como o montante do objeto dessa relação obrigacional.11

E o princípio da legalidade determina que tal descrição seja a mais precisa possível (e aqui volta-se a falar em possibilidades fáticas e jurídicas), o que, no caso das taxas, significa descrever, com a maior riqueza conceitual que as circunstâncias permitam, o serviço público prestado ou posto à disposição do particular ou o poder de polícia em relação a ele exercido, que darão nascimento à obrigação tributária.

Esse o entendimento maciço da doutrina, a exemplo de Hugo de Brito Machado:

"Para bem compreender o princípio da legalidade é importante ter presente o significado das palavras lei e criar. Aliás, dizer que um tributo só pode ser criado por lei nada significa se não se sabe o que é lei, e o que significa criar.

"Criar um tributo é estabelecer todos os elementos de que se necessita para saber se este existe, qual é o seu valor, quem deve pagar, quando e a quem deve ser pago. Assim, a lei introdutória há de conter: (a) a descrição do fato tributável; (b) a definição da base de cálculo e da alíquota, ou outro critério a ser utilizado para o estabelecimento do valor do tributo; (c) o critério para a identificação do sujeito passivo da obrigação tributária; (d) o sujeito ativo da relação tributária, se for diverso da pessoa jurídica da qual a lei seja expressão de vontade."12

Na mesma esteira, Luciano Amaro pontifica ser necessário "que a lei defina in abstrato todos os aspectos relevantes para que, in concreto, se possa determinar quem terá que pagar, quanto, a quem, à vista de quais fatos ou circunstâncias".13

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A Constituição não cria tributos, apenas outorga competência legislativa para tanto,14 de sorte que, inócuo o legislador ordinário repetir o arquétipo constitucional do tributo, como fez no art. 1o, da Lei 9.660/2000, afirmando que o fato gerador da taxa é o exercício regular do poder de polícia ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, repetindo literalmente o art. 145, II, da Carta Republicana.

Por isso, a pertinência da lição de Luís Eduardo Schoueri: "Aliás, não é demais registrar que, em matéria tributária, o princípio da legalidade é que impõe que a hipótese de incidência tributária seja completa em lei. Nada impede que mais de um diploma legal, em conjunto, sirva para o desenho da hipótese de incidência. Não seria admissível, todavia, que o legislador deixasse a diploma de menor hierarquia (decreto, instrução normativa), a tarefa de completar aquilo que a Constituição reservou à lei em sentido formal".15

Perceba-se que o Professor Titular de Direito Tributário da USP distingue, a partir de Ruy Barbosa Nogueira, duas legali-dades, a legalidade normatizada no art. 5o, II, da CR/1988, relacionada ao "poder de regular" (pouvoir financier), daquela posta no art. 150,I, da CR/1988, relacionada ao "poder de tributar" (pouvoir législatif).16

Distinguindo a legalidade tributária daquela mais genericamente prevista na Constituição, por exemplo, para a ordem econômica, ele explica que no direito econômico prevalece a legalidade relacionada ao poder regulamentar, vindo muito a calhar a expressão constitucional "em virtude de lei" (art. 5o, II, CR/1988), de modo que em termos de intervenção econômica, "se intervenção se faz 'na forma da lei', significa que não é necessário que cada intervenção concreta se dê por lei; importa, outrossim, que o modo como a intervenção se dará seja disciplinado por lei".17

Assim, prossegue: "Tem-se, daí, a confirmação de que o Princípio da Legalidade, tal como entendido em matéria de Direito Econômico, exige que a atuação estatal tenha base em lei; não se exige desta, entretanto, que discipline em minúcias o ato de intervenção, cabendo-lhes, apenas, estabelecer as metas e limites à autoridade delegada".18

"Já na matéria tributária, o Princípio da Legalidade surge com a rigidez da regra do art. 150,I, do texto constitucional, que veda à União...

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