Apropriação Indébita Previdenciária e Inexigibilidade de Conduta Conforme o Direito por Força da Precariedade da Situação Financeira da Empresa: Estudo de Caso

AutorJanaína Elias Chiaradia - Fábio André Guaragni
Páginas179-1

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1. Introdução: o caso concreto

A inexigibilidade de conduta conforme o direito tem sido matéria aventada repetidamente como tese de defesa em processos penais movidos contra empresários que praticam a omissão de repasse, às previdências, dos valores previdenciários descontados dos salários dos empregados. A base central do argumento é a precariedade financeira da empresa, situação anormal que tornaria penalmente exculpado o sujeito ativo do crime, quando omite os recolhimentos.

Neste trabalho, seleciona-se julgado do C. Tribunal Regional Federal da 4ª Região para dar subsídio a comentários concernentes tanto ao bem jurídico protegido, e seu amparo constitucional, quando da prática do crime previsto no art. 168-A, CP, como aos contornos dentro dos quais, excepcionalmente, a exculpante poderia ser aceita. Trata-se da Apelação Criminal 0013664-23.2008.404.7000/PR, Relator Desembargador Federal Luiz Fernando Wowk Penteado, publ. D.E. 11.01.2013. O julgado tem a seguinte ementa:

"PENAL. ART. 168-A, § 1º, INCISO I, E ART. 337-A, AMBOS C/C 71, DO CP. EXTINÇÃO DA PUNIBILI-DADE. PRESCRIÇÃO RETROATIVA. RECONHECIMENTO. EMENDATIO LIBELLI. APROPRIAÇÃO In-DÉBITA PREVIDENCIÁRIA. CRIME FORMAL. DOLO GENÉRICO. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. INAPLICABILIDADE. CONTINUIDADE DELITIVA ENTRE 168-A E 337-A. POSSIBILIDADE. 1. Para fins penais, o crime do art. 337-A do CP resta consumado com a constituição definitiva do crédito. Já em relação ao crime do art. 168-A, o mesmo não ocorre. O entendimento desta Corte é no sentido de que a apropriação indébita previdenciária se perfectibiliza com o simples não recolhimento, sendo crime formal, não necessitando de exaurimento da esfera administrativa para a sua consumação. Precedentes. 2. De acordo com o Código Penal, "a prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação, regula-se pela pena aplicada".

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  1. Decorrido período superior ao lapso prescricional entre a data do fato e o recebimento da denúncia e/ou entre essa e a publicação da sentença, impõe-se o reconhecimento da extinção da punibilidade (inteligência dos artigos 107, IV, do Estatuto Repressivo e 61 do Código de Processo Penal). 4. A emendatio libelli é cabível quando os fatos delituosos encontram-se claramente descritos na denúncia, servindo apenas para outorgar nova classificação jurídica à conduta delituosa narrada. 5. O delito insculpido no artigo 168-A do Código Penal é formal, ou seja, não exige resultado material para sua consumação, prescindindo da conclusão final. 6. Tratando-se de delito omissivo-formal a caracterização do tipo subjetivo nos crimes de omissão de recolhimento de contribuições previdenciárias (art. 168-A) independe da intenção específica de auferir proveito (animus rem sibi habendi), pois o que se tutela não é a apropriação das importâncias, mas o seu regular re-passe ao INSS. 7. Para o crime do artigo 337-A, o dolo, consistente na vontade dirigida ao propósito de reduzir ou suprimir a contribuição previdenciária, é genérico, bastando para tanto que o réu opte por não registrar a integralidade dos valores pagos aos empregados, como ocorreu no caso dos autos, reduzindo a base de cálculo das contribuições previdenciárias, o que acarretará a supressão ou redução da contribuição. 8. É imprescindível, para que as dificuldades financeiras possam configurar inexigibilidade de conduta diver-sa, que a defesa apresente provas contundentes da insolvência do empreendimento. 9. As condutas de não recolher à Previdência Social os valores descontados dos empregados a título de contribuições previdenciárias (art. 168-A) e em períodos próximos reduzir ou suprimir as contribuições sociais (art. 337-A), pela igualdade de lugar, similitude de modo e tempo, merecem o tratamento de crime continuado."

Referido acórdão versou sobre hipótese concreta de apropriação indébita previdenciária perpetrada por empresário cujo nome não constava dos atos constitutivos da empresa, tendo havido - todavia - a prova de que era o administrador de fato do empreendimento. A sócia majoritária figurante nos contratos sociais era uma pessoa jurídica, cuja procuradora era filha do administrador de fato.

O item 8 da ementa diz com o aspecto do julgado que interessa a este texto: a tese defensiva de que o recolhimento ao ente estatal das verbas previdenciárias descontadas dos obreiros era inexigível penal-mente, por força da precariedade da situação financeira da empresa. Pontualmente, constou do corpo do acórdão o que segue:

"Com relação à inexigibilidade de conduta diversa decorrente de crise financeira enfrentada pela empresa, esta não se verifica no caso dos autos. Como bem explicitou a sentença, não houve comprovação documental suficiente a demonstrar tal situação.

É pacífico nesta Corte o entendimento de que configura exclusão da culpabilidade, no crime de omissão de recolhimento, a ocorrência de dificuldades financeiras muito graves que impeçam o cumprimento daquela obrigação para com a Previdência Social. Sua aplicação, contudo, depende da demonstração cabal, ao encargo dos denunciados, acerca da real impossibilidade econômica de realizar o recolhimento da respectiva contribuição previdenciária, bem como o exaurimento de todos os meios necessários para efetivar essa obrigação.

Assim, têm-se exigido os seguintes requisitos: a existência de graves dificuldades financeiras; e o extremo esforço pessoal no resgate do empreendimento por parte dos sócios, com o sacrifício de bens ou direitos particulares.

Cumpre referir que o interesse particular ou de grupo não pode prevalecer em detrimento do interesse público, ou seja, manter o empreendimento às custas da apropriação de recursos da Previdência. O empreendedor deve buscar a manutenção dos empregos e dos investimentos, apenas não se pode aceitar que estes objetivos sejam alcançados com prejuízo à previdência social, que por via de consequência atinge toda a coletividade.

Ademais, por se tratar de matéria de defesa, compete exclusivamente aos acusados demonstrar a plena satisfação de ambas as condições acima indicadas, nos termos do artigo 156 do Código de Processo Penal. Nesse sentido, as seguintes ementas:

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PENAL. ARTS. 168-A E 337-A DO CP. SONEGAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA E APROPRIAÇÃO INDÉBITA DA MESMA NATUREZA. MATERIALIDADE, AUTORIA. COMPROVADAS. CONDUTA DOLOSA. EVIDENCIADA. EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. DIFICULDADES FINANCEIRAS. AUSÊNCIA DE PROVAS OBJETIVAS. CONTINUIDADE DELITIVA. TUTELA DO MESMO BEM JURÍDICO. ART. 71 DO CP. APLICABILIDADE. PRESCRIÇÃO PARCIAL DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL. REDUÇÃO DAS PENAS. SANÇÃO PECUNIÁRIA. VALORAÇÃO PROPORCIONAL. (...) 3. Para configurar a excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa é necessário que as graves dificuldades financeiras alegadas estejam sobejamente comprovadas a ponto de terem afetado não só a empresa, mas também o patrimônio pessoal do denunciado. Precedentes deste Tribunal. 4. Hipótese na qual não foram trazidos aos autos documentos aptos à demonstração do impacto desta na gestão do empreendimento e no patrimônio pessoal do acusado, circunstâncias imprescindíveis para o acolhimento da correspondente exculpante. (...) (TRF4, ACR 2008.71.08.004452-1, Oitava Turma, Relator Paulo Afonso Brum Vaz, D.E. 23/08/2012)

PENAL E PROCESSO PENAL. OMISSÃO DE RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. ART. 168-A, § 1º, I, DO CÓDIGO PENAL. DIFICULDADES FINANCEIRAS. EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE NÃO PROVADA. PRESCRIÇÃO. (...) A exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, em face da alegação de dificuldades financeiras, pressupõe a demonstração de situação invencível que tenha impossibilitado, transitoriamente, o recolhimento à Previdência Social das contribuições descontadas dos empregados. A omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias por longo período de tempo, caracterizando incorporação dos valores tributários às receitas da empresa, revela opção de gerenciamento que não se coaduna com a alegação de dificuldades financeiras transitórias e, consequentemente, não enseja o reconhecimento de causa excludente da culpabilidade. (...) (TRF4, ACR 0026563-44.2008.404.7100, Sétima Turma, Relator Márcio Antônio Rocha, D.E. 18/10/2012) não tendo havido por parte da defesa a produção de provas documentais suficientes para demons-trar a situação alegada, não há motivos para mudança no decreto condenatório."

Estes são os traços gerais do caso concreto, que dá referência às seguintes considerações.

1. Contornos constitucionais do bem jurídico tutelado no tipo penal do art 168-a, cp

O bem jurídico-penal protegido de modo imediato pela norma anteposta ao tipo do art. 168-A, CP, é a arrecadação previdenciária, desfalcada com a omissão do recolhimento. Também o patrimônio do trabalhador é violado, pois dele se desconta um montante na expectativa de que obtenha benefício previdenciários de longo prazo, que acabam fadados ao fracasso. Neste aspecto, há pluriofensividade na conduta incriminada. De modo mediato, o tipo protege toda a estrutura previdenciária brasileira. Há, portanto, o resguardo de uma autêntica "ordem previdenciária" ou securitária. Daí o acertado resumo de Regis Prado, no sentido de que o tipo preserva "o patrimônio da seguridade social e, reflexamente, as prestações públicas no âmbito social".1 Tanto o bem jurídico imediato - arrecadação - como o bem jurídico mediato, definem-se a partir do desenho que recebem da magna Carta, sobretudo dos princípios que definem os contornos da ordem econômica e social dentro das quais a...

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