Instrumentalidade do processo e devido processo legal

AutorProf. José Joaquim Calmon de Passos
CargoCoordenador do Curso de Especialização em Processo da Universidade Salvador
Páginas1-13

Coordenador do Curso de Especialização em Processo da Universidade Salvador. Professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (aposentado). Procurador de Justiça (aposentado). Advogado.

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1. Hannah .Arendt denominou um de seus notáveis trabalhos de A vida do espírito, colocando como subtítulo a trilogia - o pensar, o querer e o julgar. 1Poderíamos reformulá-lo, substituindo-o por - conhecimento, decisão e juízo, acrescido da afirmativa de que tudo isso está associado à necessidade de o homem motivar suas ações e orientá-las para os objetivos que se propõe o que, por sua vez, resulta do fato dele ser um animal que saiu da esfera da regulação pelos instintos e foi compelido a definir, ele próprio, regras para seu agir individual e coletivo, nisso residindo, precisamente, sua humanidade2.

2. Pensamos para conhecer. Desassistidos da orientação dos instintos, precisamos saber e para isso refletimos sobre nós mesmos e sobre o que nos cerca, organizando o existente em termos de compreensão. Precisamos conhecer para decidir, e decidimos com vistas a direcionar nossa atividade para o que se nos afigura melhor ou mais adequado ou mais correto, segundo o julgamento feito com base naquele conhecimento elaborado ou obtido. Por fim, agimos, buscando emprestar faticidade ao que se constituiu objeto de nossa decisão, fazendo acontecer o que sem o nosso agir jamais teria acontecido. Percorremos, também, o caminho inverso, indo dosPage 2 acontecimentos para a reflexão sobre a experiência vivida e, apoiados nela, elaboramos conhecimento o qual, por sua vez, informará nossas decisões. Essa visão esquemática da dinâmica da condição humana, abstraindo-se um sem número de condicionantes e variáveis relevantes, pode ser aplicada a qualquer esfera do saber e a qualquer tipo de experiência. Dela nos utilizaremos para trabalhar o tema que nos foi proposto.

3. O direito, como tudo quanto existe, pode ser pensado. É perfeitamente possível e válido pensar o direito e pensar sobre o direito. Diria mesmo que é fundamental essa postura, antes de qualquer outra. E, enquanto nos situamos nesse espaço, o nosso puro pensar nada determina, concretamente, no plano da faticidade, em termos de vida humana. O pensar reclama, entretanto, sua objetivação. E o que é pensado como direito deve ser objetivado, o que se dá mediante a produção de textos que denominamos de ciência, doutrina ou dogmática jurídica. Conhecimento que, no plano da regulação social da convivência humana, nenhuma conseqüência também determina, porquanto expresso por juízos descritivos, meras proposições, organizadas como saber especializado..

4. Não paramos aí, contudo. Pensando o direito e objetivando o direito pensado, com base nele julgamos e decidimos. Essas decisões, contudo, ainda se objetivam como textos, proposições, juízos, conquanto, já agora, de natureza prescritiva. No mundo de hoje, nenhuma dúvida pode subsistir de que decisões de natureza jurídica se consubstanciam em textos, quer a nível macro (textos normativos de caráter geral - legislação em sentido lato) quer a nível micro (textos normativos de caráter particular - sentenças, atos administrativos, atos negociais). Aprofundando nossa reflexão, se procurarmos indagar sobre o que dá juridicidade a esses textos, que coexistem com inúmeros outros textos prescritivos, concluiremos que ela assenta no fato de estatuirem modelos de prevenção ou solução autoritativa dos conflitos de interesses que, vindo a se configurar no grupo social, não tenham logrado composição mediante os próprios interessados, com ou sem intermediação de instâncias sociais privadas.

5. Essa nova concreção do jurídico, entretanto, ainda se constitui mero texto, impotente, por conseguinte, como os que o precederam, para gerar conseqüências materiais que traduzam efetiva interferência ou determinação no comportamento dos que são destinatários das prescrições contextualizadas. E isso se dá tanto a nível macro quanto a nível micro. Passa a dispor o jurista, nesse momento, de um sem número de textos, a Constituição, os códigos, as leis, os decretos, os contratos e tudo mais que nem por terem sido editados, promulgados, publicados ou formalizados implicam necessariamente em mudanças a nível de realidade material, no espaço da regulação da conduta humana. Dessa contingência nem mesmo escapam as sentenças transitadas em julgado. Tudo isso apenas textos, nada mais que textos.

6. Por fim, a fase última do processo, aquela que realmente temPage 3 relevância em termos de faticidade, isto é, a execução, o conjunto dos atos materiais praticados sob o pálio daquelas decisões e dos quais decorrerão efetiva interferência na liberdade e no patrimônio das pessoas. A esta altura, aterrissamos no mundo dos homens em sua mais completa concreção, deslocamo-nos do plano da validade para o da faticidade. As coisas acontecem e se diz que elas acontecem e se legitimam por força de sua adequação à legalidade. Já não lidamos com textos, sim com vidas, criaturas humanas, nossos semelhantes, sempre perplexos a se indagarem por que alguns homens podem tanto em relação a outros homens, a ponto de lhes determinarem o que devem e o que não devem fazer, necessariamente.

7. Se quisermos ser fieis e coerentes com quanto afirmado precedentemente, seremos obrigados a concluir que o direito, enquanto produto de pensamento e decisão (julgamento) é sempre linguagem, texto, proposição descritiva ou proposição prescritiva, extremamente vulnerável e impotente. Este, entretanto, é o material com que trabalhamos, nós, os juristas, e representa tudo quanto se coloca no espaço de nossa percepção e se faz operável por nós. Mas percebemos, por igual, que esses textos, proposições e prescrições são o resultado de todo um processo que os precedeu e foi determinante para a definição de seu conteúdo, o qual, em si mesmo e enquanto texto, de nenhum poder de determinação se revestiu, antes foram decisivamente determinados pelo processo de sua produção que, este, sim, foi preeminente e determinante. Discipliná-lo é o que se faz imperioso para se lograr o produto desejado.

8. Sendo assim, antes de o produto condicionar o processo, é o processo que condiciona o produto. A nível macro, a norma jurídica de caráter geral é algo determinado pelo processo de sua produção, um processo de natureza política. É esse processo que reclama rigorosa disciplina, em todos os seus aspectos - agentes, organização e procedimentos - sob pena de se privilegiar o arbítrio dos decisores. Não há como se dissociar o direito obtido como produto da organização política da sociedade que o produz e do processo político mediante o qual as reduções de complexidade se efetivam nesse primeiro momento, macropolítico e macroeconômico. Nem para aí o processo de produção do direito, pois ele prossegue numa segunda etapa, aquela que, a nível micro, deve editar a norma reguladora de um conflito precisamente delimitado em termos de pessoas, de tempo, de lugar e de circunstâncias. Também aqui, como ali, antes de o produto condicionar o processo, é o processo que condiciona o produto. E também aqui não podemos dissociar o produto do processo de sua produção, que reclama , como antes, rigorosa disciplina, em todos os seus aspectos - agentes, organização e procedimentos - sob pena de se privilegiar o arbítrio dos decisores.

9. É essa evidência que o modismo da "instrumentalidade do processo" camufla, ou conscientemente - perversidade ideológica, a ser combatida, ouPage 4 por descuido epistemológico - equívoco a ser corrigido. Ele parece ignorar ou finge ignorar o conjunto de fatores que determinaram uma nova postura para o pensar e aplicar o direito em nossos dias, como sejam a crise da razão instrumental, severamente posta a nu neste século, os avanços originados pelos estudos semiológicos, a revalorização do político, a partir dos desencantos existenciais recolhidos da experiência do capitalismo tardio e da derrocada do socialismo real, a crise do Estado do Bem Estar Social e, principalmente, as revoluções que têm sua raiz no progresso técnico-científico, acelerado depois da Segunda Grande Guerra Mundial. São elas a revolução eletrônica, seguida pelas revoluções das comunicações, dos novos materiais, da biotecnológica, todas incorporando lógicas próprias que determinaram a hibridização das várias lógicas organizativas as quais, por sua vez, influenciaram a mudança radical operada na ciência organizacional, com inevitável repercussão sobre o Estado e o direito. Tudo isso denuncia a existência de um novo paradigma, a pedir seja repensado o que ontem tínhamos como certeza.3

10. Foi a consciência dessa mudança que motivou a reflexão jurídica de pessoas que estão se tornando referências em nosso tempo. Poderíamos agrupá-las sob a denominação de "procedimentalistas", à falta de um nome melhor, ou de adeptos da processualização do direito. Tentaremos sintetizála. Se o direito é uma das formas de emprestar sentido e significação ao agir do homem, ele reclama, para sua compreensão, ser analisado do ponto de vista da comunicação humana, donde a ineliminável dimensão intersubjetiva e lingüística de sua produção. Torna-se, pois, fundamental instritucionalizarse o que provisoriamente pode ser denominado de status activus processualis, concebido como o reconhecimento do direito fundamental de se participar, ativa e responsavelmente, nos...

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